Indo direito ao assunto, podemos começar por admitir que no final de 12 anos de escolaridade o estudante português não está em condições de distinguir moral de ética, princípio de lei, moralidade de legalidade. O estudante saberá um quase nada de História de Portugal, quase nada de História das ideias e nada de nada de Direito (ou de Português, já agora). E o pouco que sabe, quantificado ao longo de um trajecto escolar que não garante fiabilidade, é inútil. O sistema não o levou para uma compreensão interdisciplinar e transdisciplinar; ou seja, o aluno recolheu alguma informação, mas ela é avulsa, desconexa, incompleta. Como consequência, a Escola não talha cidadãos, pois boicota a formação de uma visão de conjunto da sociedade. É como se a Escola tivesse aversão à realidade, tudo fazendo para proteger o aluno do mundo exterior. Esse aluno, cuja vida foi só brincar e decorar, e que pertence à elite dos menos de 25% que concluem o Ensino Secundário, parte para as licenciaturas, ou para o mercado de trabalho, sem saber onde está, donde vieram os seus pais, para onde vão os seus filhos. Entretanto, já pode conduzir e votar sendo que a última actividade é ainda mais perigosa do que a primeira.
(
extracto de Aspirina B: ácido acetilsalicílico+tiamina+aneurina+um porradal de substâncias)
Não sabia que alguém escrevia posts mais compridos do que os meus e, assim como os meus também, quase sem erros de Português. Duvido de que alguém leia aquilo tudo, como acontece aqui neste rés-do-chão, número 001 do Quebra-Costas, mas enfim, eu cá até li, enchi-me de coragem e aqui vai disto. Não doeu nada.
Aquele extracto de complexo vitamínico, ali em cima, refere-se a um assunto deveras interessante (para mim e para os meus botões) sobre o qual ninguém se atreve a mandar umas bocas, nanja eu: o ensino não tem absolutamente nada a ver com a aprendizagem.
Bom, nanja eu é como quem diz.
Qual é a semelhança que existe entre a matéria de estudo de uma determinada disciplina, em qualquer grau de ensino, com o objecto ou conteúdo dessa mesma disciplina?
Longa pergunta para resposta sintética: nenhuma. Por exemplo: o que tem a disciplina de Inglês a ver com o Inglês? Nada; qualquer semelhança entre uma coisa e outra é pura coincidência; numa semana de férias em Londres, qualquer atrasado mental aprende mais Inglês do que em dois ou três anos de aulas de "Língua Inglesa".
Esta disciplina, como qualquer outra de línguas "vivas" - ou de qualquer outra área, mas já lá iremos - obedece a uma lógica meramente curricular, totalmente desligada da realidade pragmática e do ambiente linguístico a que teoricamente se refere; depende em exclusivo, em termos de eficácia e de proficiência, do esquema geral do processo de ensino/aprendizagem que consiste, em Portugal, em assistir às aulas, ter boas notas nos testes e passar de ano; consiste ainda, por fim, na transmissão (ou apropriação, por qualquer meio, incluindo o chamado "copianço") de esquemas padronizados de utilização da língua (principalmente, exercícios de gramática), e baseia-se num "approach" que privilegia a escrita em detrimento da oralidade.
Ou seja, um aluno poderá aprender alguma coisa, nas aulas de Inglês, mas não ficará nunca - com toda a certeza - apto a utilizar aquela língua com um módico de eficácia. O que significa o seguinte, e com isto voltamos ao início do paradigma: não é Inglês que se aprende nas aulas de Inglês. Aliás, nesta como em qualquer outra disciplina curricular, reiteremos, em todos os graus de ensino, existe um linguajar específico, um modo de comunicação instituído e ritualizado que afasta ainda mais o estudante do objecto de estudo. As aulas de Inglês são dadas numa "espécie de" Inglês, que muito pouco ou nada tem a ver com a língua inglesa. O que interessa é que a nota a essa "cadeira" contribua para a média geral, bastando para isso despejar umas coisas acertadas nos testes e exames teóricos (sobre coisas de que nenhum anglófono alguma vez ouviu falar) e, de "cadeira" em "cadeira", ano após ano, cortar a meta final, qual Carlos Lopes da ignorância, recebendo a sua medalhinha - o diploma - pelo esforço dispendido em tão longa maratona.
O mesmo princípio se aplica a todas as outras "matérias", não apenas às línguas, a começar na Matemática e a acabar (nem de propósito) na História, passando muito evidentemente pelo Português. O verdadeiro desastre nacional a que se assiste quotidianamente, naquilo que à língua portuguesa diz respeito, não é uma consequência directa do sistema anacrónico de ensino: a escola poderá, quando muito, dar uma ajuda, mas o factor primordial de aprendizagem do Português é a leitura, primeiro, e a escrita, depois. Ora, peguemos então por aqui, como bem sabemos não é o aluno que mais lê e mais escreve, em princípio ou por definição, aquele que melhores classificações obterá na disciplina de Português; pelo contrário, e isso é tanto mais notório quanto mais descermos no grau de ensino. E este espantoso, quantificável e verificável facto deve-se exclusivamente ao "pormenor" de, mais uma vez, o Português do sistema de ensino não ter nada a ver com o Português. Não é possível escrever (ou mesmo ler) correctamente sem ter lido muito, ler muito, ter escrito muito e escrever muito; ninguém precisa de declinar casos verbais para escrever uma lista de compras ou um tratado de anatomia; uma frase bem construída é resultado da experiência e do manancial de conhecimentos informais de cada qual e, pelo contrário, o erro discursivo surge da ausência desses mesmos conhecimentos e experiência, da falta de livros - a qual significa, fatalmente, ausência de automatismos discursivos e de intuição linguística.
Por analogia com a semana de férias em Londres, qualquer estudante (ou não estudante) aprende mais a escrever com correcção num único romance de Eça de Queirós, por exemplo, do que em toda a sua carreira académica. Levando a coisa ao extremo argumentativo, uma única página, um singelo parágrafo daquele romancista excelente, qualquer dessas coisas é mais instrutiva do que dezenas de horas passadas nas aulas. E, note-se bem, é este um dos romancistas portugueses aos quais mais e mais sistematicamente são assacados "erros" na escrita. Quem? Ora, quem: esquisitos, admiradores de Lobo Antunes, e assim.
Por paradoxal que possa parecer, isto não é nenhuma espécie de apologia do empirismo e muito menos do chamado "saber de experiência feito". Pelo contrário. A escola pode (ou poderia) constituir uma forma de estruturação do saber; porém, a realidade actual demonstra que a escola não é tal: não apenas não forma como, de certa maneira, deforma o objecto de estudo e, por consequência, desestrutura o conhecimento, espartilhando-o em formatos metodológicos rígidos.
O linguajar específico de cada disciplina, normativo e impositivo, afasta cada vez para mais longe a matéria, os conteúdos, o objecto a que teoricamente se refere. Tomemos como ilustração o "matematiquês" (a língua veicular da disciplina de Matemática): muito mais importante do que saber resolver uma equação de 2º grau, através de raciocínio lógico e com recurso a alguns conhecimentos básicos, é conhecer o significado de expressões-chave do dialecto específico; mesmo inteligente, mesmo dotado, ainda que possuindo ferramentas mentais extraordinárias, estudante algum será capaz de resolver o problema caso desconheça aquele linguajar. É nesta medida que o ensino regular se revela totalmente desligado da realidade e, por consequência, daquilo que se presumiria ser o seu objectivo primordial, isto é, a transmissão do saber.
Existe uma lógica meramente formal, no ensino, que viabiliza este paradoxo: um aluno pode ser capaz, mas mostrar-se incapaz, ou ser incapaz e mostrar-se capaz. É por isso que vemos tantos licenciados (e mestres e doutores) que não sabem escrever, mas debitam palermices e asneiras em tudo quanto é pasquim; alguns destes incapazes promovidos pelo sistema de ensino dialectal chegam mesmo a dar aulas, em todos os graus de ensino mas principalmente nas universidades, reintegrando-se no fluxo de disseminação da ignorância diplomada.
São conhecidos, porque o descaramento não tem limites, casos de professores de Alemão que, sem rebuço, confessam não saber "nada de Alemão"; pois, mas sabem muito, têm todos longos anos de experiência de
ensino de Alemão, o que é, já sabemos, algo totalmente diferente. Claro. O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Os alunos vão às aulas para "aprender" a declinar casos (Nominativ, Akkusativ, Dativ, Genitiv) e umas coisinhas assim; saber Alemão não interessa para nada, nem é o que está em causa. Não deve surpreender ninguém que um filho de emigrante na Alemanha tenha dificuldades com esta disciplina, em Portugal.
Para passar com distinção a Geografia, a Biologia, o aluno apenas deverá reconhecer as fórmulas canónicas do "geografês" e do "biologês", marrar umas coisas na véspera ou copiar outras tantas no exame, e pronto, não tem nada que se ralar com pormenores como o RPC dos países em vias de desenvolvimento ou com as causas do míldio; há que interpretar a expressão "atente na figura e discorra sobre as consequências do efeito de estufa, a nível de..." (algo ensaiado na aula), sem fazer a mais pequena ideia daquilo que vem a ser uma estufa ou para que efeito serve; declinar a anatomia da rã, eviscerada num desenho, é muito mais importante, pelos vistos, do que saber de que lado é o fígado nos seres humanos.
Os exemplos seriam inúmeros, e fastidiosos, demonstrando em toda a latitude que não existe qualquer intersecção entre o saber e a escola ou que, na melhor das hipóteses, essa área comum é singularmente microscópica. O sistema de ensino "pós-moderno" é um sistema constituído por uma rede de depósitos de jovens, imberbes e ignorantes, sistema esse cuja função consiste em esperar que aos jovens cresça barba.
Presumir que ou ter alguma espécie de esperança em que alguém aprenda alguma coisa no processo, é desconhecer (ou fingir desconhecer) que a razão de ser do sistema de ensino não é propriamente o aluno, mas que o aluno é a razão para que o próprio sistema subsista, como coisa em si, tornando irrelevante o ensino e muito mais ainda a aprendizagem.