Odi profanum vulgus et arceo

29/01/05

Da beleza


Diz-me porque te escondes e onde
Porque não entendo o que dizes nem quando
O que sobra da tua sombra ou como sabes
Onde me escondo e disparo sobre os teus passos.

Descobre o meu esconderijo, por favor.
Liberta este meu sentido inerte
Livra-me do mal, ou não, que disparate!
Quando souber o que dizer, exactamente,
Hás-de saber que preciso de ti
Mais do que nunca, perdidamente.

E é isso que faz tanto sentido como alinhavar
Palavras ou linhas com linha fina
O mesmo sentido do absurdo
E a mesma lengalenga elegante
Vazia, tão vazia como o meu reflexo
Neste estúpido espelho onde te vejo.

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13/01/05

Dust to dust


Essa excelente série americana, que nem sei se ainda dura, ensina mais do que dezenas de livros, como diria Mogais Sagmento, em um milésimo do tempo necessário para os ler. Espécie de paradigma do conhecimento, os episódios de Six Feet Under são conhecidos em Portugal, por uma esmagadora minoria (1), pelo título traduzido e adaptado "sete palmos de terra" (deliciosa e subliminar expressão, com seu toque de vernáculo, como convém).
Ora, esta coisa é vagamente intrigante. Seis pés, se bem me lembro e fazendo contas de cabeça, o que, é sabido, não é o meu forte, são cerca de - ou mais de - 180 cm. Os sete palmos portugueses devem rondar, no máximo, a 20 ou 25 cm o palmo, qualquer coisa como 130, 140 centímetros, no máximo. Há-de haver aqui alguma subtileza - cultural e escatológica: os americanos enterram os seus mortos mais fundo do que a gente. Caneco. Bálhamedeus. Porque será?
Num dia, anda a gente gozando de excelente saúde, tostando ao nosso belo sol, curtindo nossas prerrogativas (as quais consistem, em resumo, em não fazer porra nenhuma), e no dia seguinte a coisa acaba-se, pronto, já está, morto e enterrado, finito. Chapeau, como diria Lobo Antunes. Mais perto, ligeiramente, da superfície, do que aquilo que acontece com os americanos, mas ainda assim enterradíssimos, sem apelo nem agravo. A mesma merda, com umas polegadas de diferença.
Pronto. Já está, repito. Num caso e noutro, mais pázada menos pázada, mais centímetro menos centímetro, ou mais pé menos pé, enfim, mais coisa menos coisa, o resultado é o mesmo. Processo limpo, ancestral, higiénico, expedito, a morte. Por regra e por definição, caberá a alguém, pobre vítima acidental, a estopada de distribuir e de despachar os pertences, as tralhas, as recordações e as marcas pessoais de cada falecido, de cada um de nós, a nossa herança e o nosso legado - coisa para uma semanita de trabalho que caberá à infortunada pessoa.
A coisa propriamente dita, as exéquias, ou funeral, ou que se lhe quiser chamar, processa-se em dez minutos, não mais: depois da missinha da praxe ("por alma"), se for o caso, ou com qualquer outro nome de ofício religioso, há um cortejo em marcha lenta, depois um buraco na terra, uns quantos profissionais de pá na mão e ar circunspecto; um padre, ou coisa que o valha, debita umas palavrinhas por desfastio e por fé; o esquife é descido; tchof, tchof, tchof, a terra chove sobre o caixão. Acabou. É assim, como agora se diz até à náusea.
Talvez o mais surpreendente ensinamento desta série seja (ou foi) o detalhe mórbido daquilo que se faz com os cadáveres, industrialmente falando, nas horas que antecedem a cerimónia de despedida. Eu cá não fazia a mais pequena ideia de que é necessário vedar todos os orifícios de um ser-humano, antes de o despachar. Boca, ouvidos, nariz e ânus são devidamente obliterados, tapados, com uma substância apropriada (silicone?, betume?, argila?), não vá suceder que aquela massa inerte desate a gotejar ou a largar fluidos inconvenientemente.
Nos hospitais, quando alguém por acaso se apaga, o pessoal de enfermagem prepara o ex-doente que acaba de se finar, começando por facilitar o trabalho ao colega seguinte - o gato-pingado, e a este processo se chama na gíria "fazer a múmia". Genial expressão. Múmia. Fazer a múmia. Cirúrgica, judiciosa, preciosa expressão. Dali, do hospital, o cadáver passa, em princípio (se não houver necessidade de autópsia), para a agência funerária, onde são feitas as tais preparação e alindamento; passa de múmia a falecido, ou seja, de matéria inerte semi-preparada e processada a produto acabado para as cerimónias fúnebres. Suave transição, excelente sequência.
Nos preparos finais, nas mãos dos competentes manufactores de defuntos, o cadáver será transformado em algo de muito apresentável; ficará composto, arranjado, aprumado. Muito provavelmente, nas mãos de profissionais tão expeditos, ficará muito mais apresentável, escanhoado, bonito, do que alguma vez terá sido em vida. É um serviço que se recomenda. Excelente. Aquilo dos orifícios naturais obliterados é um extra mas é também um "must"; é possí­vel que ao morto seja adicionado um sorriso na boca, ou apenso um crucifixo nas mãos; pode até ser que lhe ponham as maçãs-do-rosto mais rosadas, ou que lhe dêem sombra nos olhos, entre outros truques. No fundo, morrer é um último acto de alguma peça para a qual toda a gente é convidada menos o protagonista.
Não se pode morrer, como se sabe, caso não se esteja absolutamente impecável. Trata-se da nossa única propriedade horizontal. É conveniente não incomodar os que se seguem, em especial se os crepes e os salgadinhos servidos durante a cerimónia não forem grande coisa.
Cremação. Urna fechada. Eis o meu testamento em três palavras.
E deixem os meus buracos em paz, se faz o favor.


(1) expressão idiomática original, criada aqui, copiada no jingle da Sagres Preta e referida também aqui anteriormente - algures

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