O anonimato, velha e relha questão
Só representando o papel de homem nulo, indiferente, distraído sem talentos nem capacidade de conhecimento e apreciação consegui escapar às investigações sôfregas e persistentes do enxame de espiões que infesta Lisboa. Passei assim a ser olhado como um homem vulgaríssimo. Firmado no conceito da minha nulidade, consegui escapar. Não obstante, não deixei de ter sobressaltos todas as vezes que havia uma rusga policial, o que frequentemente acontecia. A cada uma delas, novos alarmes.
Mil vezes me julguei espiado pela polícia e outras tantas me supus perseguido pela milícia destes vis e infames quadrilheiros A imaginação sobressaltada representava-me já enterrado numa masmorra como asilo que me fora destinado, ouvindo o arrastar das grilhetas, a sentir o seu peso. Todas estas fantasmagorias bastavam para me enregelar e prostrar de terror, e, tremente, sentia-me aniquilado.
Quantas vezes, durante a noite, o mais pequeno ruído me fez cobrir de suores de morte! Quantas outras tantas vezes as pancadas na aldraba da minha porta me causaram temores, tremuras e apertos de coração! A minha situação durante seis meses foi bem digna de dó.
Não obstante, tive a coragem de prosseguir nas minhas anotações e de concluir a obra que começara. E se forem consideradas as inquietações que ela me custou, bem como os perigos a que me expus, este livro merece ser recebido com indulgência e alcançar algum êxito.
Logo que me foi oferecida a oportunidade de publicar as minhas notas, agarrei-a com ambas as mãos.
Neste livro revelo Lisboa nos seus aspectos moral, físico, civil, político e religioso, e forneço pormenores interessantes e curiosos sobre esta cidade, sobre a corte, os habitantes e os costumes. Todas estas observações valem pela novidade e revelam, com verdade, as gradações da rudeza, da ignorância, da nulidade e do ridículo desta sociedade que acumula aqueles defeitos com presunção, orgulho e pretensiosismo. A culpa deste estado cabe, no geral, certamente ao povo português, mas principalmente recai sobre aqueles que o governam. Não me foi possível alindar as imagens que aqui deixo; fazê-lo seria faltar ao respeito que devo à verdade.
Pessoalmente, nada temo ao publicar o resultado das minhas observações; receio, porém, que grande número de outros indivíduos venha a ser vitima inocente da vingança do governo português...
Essa vingança perseguirá com persistência, que não abrandará, o desgraçado que se torne suspeito de ser autor desta obra, pois basta tal suspeita para, se o puderem haver às mãos, com os tormentos mais cruéis acabarem com ele. E tal vingança, mesmo em países onde as leis mais cuidadosamente velam pela segurança dos indivíduos, mesmo aí alcançar - se o não puderem raptar, o punhal ou o veneno bastarão para o roubar à sociedade, armas que os portugueses costumam usar.
As precauções que tomei constituem a minha segurança - não sou suspeito nem o serei nunca, podendo voltar a Portugal sem receio. Vivo num país onde a liberdade dos cidadãos é respeitada e protegida, onde se não teme as violências do funesto despotismo dos ministros e dos reis; mas tantas pessoas têm sido vexadas, perseguidas, ultrajadas e tratadas com tão revoltante indignidade pelos poderes de Portugal que é lícito conjecturar que uma tal vingança venha a cair sobre um desses repatriados, suspeitosamente acusados. Para evitarem equívocos e acertarem, hão-de envolver muitos na mesma suspeita e os que tenham revelado faculdades de observação, sensibilidade, coragem, energia e algum talento literário - serão as infortunadas vítimas, cujas cabeças hão-de tombar aos golpes da vingança portuguesa.
Desde já denuncio a toda a Europa esse novo atentado. Se vier a haver alguém violentamente maltratado pelo governo português e se depois de preso desaparecer e perecer violentamente vítima da sanha ministerial dos subdéspotas de Portugal - pela morte da vítima se identificará o assassínio.
Nesse caso terei sido eu, com o meu livro, a causa inocente da sua perda. Tenho, portanto, o dever de ser o seu vingador retomando a pena para revelar universalmente este novo crime dos ministros de Portugal. Demonstrá-lo-ei com tanta energia como verdade e apontá-lo-ei tanto mais atroz quanto é inocente a vítima, chamando sobre os autores do crime a indignação de toda a Europa e a abominação dos séculos.
J.B.F Carrére,
Panorama de Lisboa no ano de 1796, prefácio do autor, pág. 21
ed. Biblioteca Nacional, série Portugal e os Estrangeiros
BN, Lisboa, 1989
(Nota: para uma perspectiva mais actual, onde se lê "governo português", leia-se "blogosfera portuguesa", e onde se lê "ministros", leia-se "
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