ab...cesso
De vez em quando, espreito aquela coisa; é a minha faceta de "voyeur" a dar de si, solta-se o puto que há em mim, espreito por uns momentos como se o programa fosse um buraco de fechadura à moda antiga. Tem de ser mesmo de fugida, uma olhadela, uns segundos, e depois toca a fugir, zap, zap, zapping, a tomar ar longe, socorro, tirem-me daqui, ó coisinha nojenta, livra!Existem programas de televisão absolutamente irrespiráveis, e este é um deles; conveniente, no entanto, para quem se interessa por zoologia, ou havendo curiosidade intelectual pelos comportamentos em grupo e pelas manadas em geral. De facto, do mesmo modo que se deve assistir estóica e regularmente a alguns segundos de "Os Malucos do Riso" ou de qualquer filme do Manuel de Oliveira, nenhuma pessoa que se pretenda minimamente informada dever-se-á furtar aos seus deveres sociais; destes, sem dúvida, aquele que merece o maior apreço, por parte da comunidade intelectual, é o do sacrifício da visualização de lixo mediático, vulgarmente e apropriadamente designado por telelixo. Assistir a alguns programas televisivos poderá constituir mesmo um acto de verdadeira e nunca reconhecida heroicidade, devido ao ambiente degradante em que se desenvolvem e também, ou principalmente, à extrema toxicidade mental a que se sujeita o intrépido telespectador quando neles, como soe dizer-se, penetra.
Assim a voo de pássaro, as imagens fugazes que me ocorrem (além da psicóloga de serviço, não muito má espingarda) remetem infalivelmente, todas, para aquilo que o sexo pode ter de mais terrível, falar dele, e de mais abjecto, falar dele interminavelmente. Aquela coisa tem assistência no local, umas quantas filas de elementos aleatoriamente seleccionados de entre as chamadas "massas", isto é, o poviléu mais retinto e caracteristicamente embrutecido que se possa imaginar; cabe a esta gente aplaudir a actuação dos artistas no redondel, onde pontifica a apresentadora, espécie de mestre-de-cerimónias da coisa púbica; Marta Crawford, de sua graça, dispensando a cartola branca e o pingalim, mas não as botas de montar e as calças de fole, tem por função esparramar por cima das cabeças circunstantes a sua imensa sabedoria sobre tudo e mais alguma coisa a respeito, utilizando para o efeito um verdadeiro arsenal de conhecimentos, isto e aquilo, e de artefactos, vibradores sortidos, preservativos coloridos, aparelhos com ambos os sexos embutidos, e de argumentos, sobre maridos traídos, amantes desajeitados ou mal paridos, homossexuais travestidos, casos de amores desfeitos ou corações partidos, e de técnicas para usar na cama, no tapete ou mesmo no guarda-vestidos, o que são e onde os sítios bem (ou mal) lambidos, o que é ter um apenas ou mais queridos; e diz que se deve destruir os preconceitos mais empedernidos, trazer à luz do dia os fantasmas mais escondidos, das mulheres o dever de conquistar os seus maridos, quantos e quais são os casos de amantes bem ou mal fodidos, onde pôr a mão exactamente, para escutar certos, requintados, deliciosos gemidos, os mistérios insondáveis que se escondem por debaixo da roupa de todos, mesmo dos mais vestidos, ou dos mais tarados, ou dos homens em geral, até dos mais mal servidos.
No fim de cada número, que também pode meter convidados, cada qual com seu naipe de habilidades, o povo em volta aplaude, grato e embevecido pelos conhecimentos que acaba de adquirir. De vez em quando, entremeando as prelecções, Marta esclarece dúvidas ao telefone, sem nunca pestanejar e raramente se rindo; desde o melhor lubrificante para que se possa ter relações anais "gratificantes" até à escolha das pilhas adequadas para determinado vibrador, nenhum ouvinte espectador continua a duvidar de coisa alguma, assim que a psicóloga despacha a chamada. Alternando com esta técnica de esclarecimento, por vezes algum felizardo ou felizarda da assistência pode também colocar a sua "dúvida" em directo, falando-lhe ali ao microfone: deve-se rapar os pelos do púbis ou isso faz mal à saúde? A masturbação deve ser feita sempre que se pode, ou apenas amiúde? E é sempre cada um por si, ou pode-se pedir a alguém que ajude? No sexo em geral, o que acha, deve-se ser meigo ou deve-se ser rude? Onde está escrito "ide e multiplicai-vos", é na Bíblia ou no Talmude? Ele é muito estranho, tem muito sono, não haverá nada que o ajude?
Marta a tudo responde, como se sabe, e sempre termina seja o que for dizendo que "é agradável", certa coisa, determinada posição, ou então que é mais ainda, que é "muito agradável", certa posição, determinada coisa. Varia, mas pouco. Sabe sempre, e ressalvando melhor opinião, qual a melhor resposta para qualquer questão; sabe sempre, de fonte segura, aquilo que dá e o que não dá tesão, onde se deve mexer, ou não, o que pode ser "mais agradável" feito à máquina ou feito à mão, quando usar desinfectante ou apenas sabão, e os casos em que se recomenda o "Dystron"; qual é ao certo a diferença entre um pénis normal e um outro ligeiramente anão, que pode ser para a mulher "agradável" o sexo "à cão" ou se será melhor não insistir nessa posição; sabe perfeitamente que incesto é, por exemplo, entre irmã e irmão, ou que, também por exemplo, quem muito se gaba é geralmente um parvalhão; e há o beijo que se rouba, o sexo ladrão, e a mulher insaciável, sexo lambão, e o sexo escondido, o da traição, e o homem atraiçoado, o "chamado" cabrão.
Um espectáculo, o da Marta, com outro espectáculo dentro, a própria Marta. Faça-se-lhe a justiça de reconhecer que o programa evita fanaticamente a grosseria, para a qual, de resto, muito esporadicamente resvala; poder-se-á talvez presumir que nunca por nunca ali se ouviram termos como caralho, cona, tesão, broche, paneleiro, sessenta e nove, enrabanço, punheta, minete, bacanal, etc.; nada disso, ele é tudo termos técnicos, respectivamente, pénis, vagina, excitação sexual, fellatio, homossexual, 69, relações anais, masturbação, cunnilingus, sexo em grupo, etc. É muito engraçado, para além de instrutivo. Ao povo não faz mal nenhum, se bem que também não adiante nem atrase, tomar conhecimento das designações técnicas de tudo aquilo que sempre fizeram sem nunca lhes ter ocorrido que tais coisas poderiam ter nomes tão complicados; ou para que servem, se os outros nomes fazem o mesmo efeito; ou se a apresentadora conhecerá tudo aquilo por experiência própria ou apenas de ouvir falar; ou para que raio, em resumo, servem tão detalhados ensinamentos sobre algo que existe desde o início dos tempos. Mas isto é o povo a pensar, em seus eventuais e imperscrutáveis raciocínios. No fundo, aquilo que lhes interessa é receber o devido pagamento pela função de espectadores a fingir. Quanto mais fingirem, mais recebem, tanto dá naquele programa como no "Preço Certo Em Euros" ou no "Prós e Contras", salvas as devidas distâncias.
E sabem, principalmente, no fundo, no fundo, que não são apenas eles quem está ali a fingir. Que não é somente o cenário que é falso, como de resto todos os cenários que se montam e desmontam. Que não são os únicos ali que aplaudem somente quando um cartaz diz "aplausos", ou riem quando outro cartaz diz "risos". Que, por fim, o sexo não é algo que se possa espremer, drenar, lancetar; não é um abcesso que se trate à força de mezinhas, receitas caseiras e engenhocas suspeitas. Em princípio, não larga pus e não fede.
(imagem de TVI online)