Odi profanum vulgus et arceo

29/12/06

Algo me diz

Que esta batalha entre a tua sombra e um dos meus fantasmas,
que um deles não ganhará nunca o direito à tua estátua de pedra.
Algo me
diz que não haverá nem vencedor nem vencido ou
seja como for nada poderá derrotar os outros
mesmo que um deles desista e bata no peito
jurando que
por sua culpa, sua máxima culpa,
por pensamentos, palavras e obras,
nada ficará como dantes.
E nada me diz que alguma coisa te fará sorrir
quando souberes o que diz a tua sombra:
um espelho da luz que te ilumina
como se fosse um verso escrito ao contrário.
Que ainda assim saberás onde me encontrar.
Que descobrirás por fim uma maneira simples
de perscrutar o meu horizonte.

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24/12/06

No tal

Destino virado do avesso
Nisto em que me atravesso
Um desatino curto e grosso
Como o estertor de um colosso
É o tempo que sinto finda
A vitória por fim ou ainda
Não é algo de que se prescinda
A imagem de mim por fim a mais linda
Stop enfim stop a partida stop a vinda
Vai-te mal vai-te animal
deixa-me em paz

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23/12/06

Bom Natal para...



... a Manuela, algures no Canadá
... o Edgar, no Recife, Brasil
...

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19/12/06

Consultório sentimental - XXIII

Tu, Carolina

A minha namorada, que se chama Carolina, está sempre a embirrar comigo, por tudo e por nada. Ao princípio eram só qualidades e agora só vê defeitos. Isto é normal? Para que diabo passa ela o tempo todo a chatear-me com merdinhas da treta? Será que ela já não gosta de mim?
José C. S., Leiria

Será, filho. Infelizmente, ou felizmente, quem sabe, será. Essa tal Carolina, desculpe lá a franqueza, ó José, acaba de lhe oferecer um belo de um par de patins. Nada mais natural. O mais provável é que já ande "metida" com outro gajo e agora, das duas uma, ou não sabe como o há-de empontar a si com souplesse ou o outro ainda não lhe dá garantias de cobrir a parada. Deve ser este o caso, moço, já que é o trivial do trivial; raramente uma mulher se preocupa com subtilezas, quando chega a hora de dar o pontapé da ordem; se calhar, é também o mais provável, a nova aquisição está comprometida, por assim dizer, isto é, ou é casado, ou tem namorada, ou não se decide a "assumir" a coisa com a Carolina, ou o caralho mais velho; há-de ser seguramente uma destas. É capaz de ser prudente deixar sempre uma hipótese em aberto para qualquer imponderável, ou, como se costuma dizer, vá lá a gente entender as mulheres, e daí aquela expressão lapidar, a do caralho mais velho, verdadeira porta aberta para qualquer outra possibilidade que não lembraria nem ao careca.

É que, diz-me a experiência de algumas décadas, aquelas que referi são as motivações mais costumeiras para casos semelhantes, mas existem algumas outras, espere aí, não nos precipitemos em juízos falaciosos. Há, de facto, mais umas quantas hipóteses a considerar. Convém não esquecer aquilo que o mulherio designa genericamente por "medo" ou, em alternativa, por "receio": em suma, quer isso dizer que não apenas mulher alguma larga um homem sem estar já devidamente equipada com outro, como, ainda por cima, só largará de vez o primeiro se o segundo for coisa "segura"; quando não, arrisca-se a foder-se em toda a linha e a ficar, supremo terror feminino, a chuchar no dedo por ambos os lados, salvo seja, isto é, a ficar sem um e sem o outro.

Quando uma mulher se "apaixona" e, por conseguinte, necessita de despachar o actual penduricalho, mais a pessoa anexa, existe um terror primordial que tudo condiciona: a primeira cambalhota e outros números circenses, com o novo partenaire, ou candidato a tal parceria. É que muitas coisas podem correr mal como o caralho, chefe, as possibilidades são imensas e a probabilidade é tão elevada que até chateia.

Vamos supor, e isso é muito mais comum do que geralmente se imagina, que o novo objecto da tal "paixão", em chegando a hora da verdade, aquilo por que a chavala tanto ansiava, acaba por se revelar um verdadeiro desastre: apaga-se-lhe o maçarico ou, pior ainda, apresenta um, aceso, sim, mas do tamanho de qualquer isqueiro Bic. Danou-se, pois. É certinho. Quando, por ocasiões da primeira pinocada, uma moçoila desprevenida e inocente depara com uma gaita que se não levanta nem por nada, de imediato valores mais altos se alevantam, é um Deus nos acuda, e pruridos morais e recriminações e cabeçadas na parede e "que estúpida que eu sou" e coisas assim. As situações em que acaba por não haver foda são, por definição, realmente fodidas. Se, porventura, aquilo levanta mas mais valia que estivesse quietinho, de tão mirrado que parece (e é), aí a coisa pode ficar feia, ou seja, não apenas a gaja fica fodidíssima por ver que já o não vai ser, como provavelmente desatará a rir, o que também é natural - são os nervos a dar de si, a tensão acumulada a desacumular-se rapidamente, enfim, uma merda. Poderá ser ainda que, não havendo reclamações no capítulo da rigidez, e também não no do tamanho, o problema resida no factor temporal, chamemos-lhe assim, isto é, se o gajo se vem em menos de um fósforo; tudo que seja inferior a cinco minutos, como já aqui antes foi devidamente esclarecido, é tecnicamente designado como ejaculação precoce, um engulho nada despiciendo para quem dele sofre: o portador da deficiência e, principalmente, a infeliz contemplada. E depois, ainda há um outro terror, um outro "medo" tipicamente feminino, que pode por vezes ser confundido com alguma espécie de rebate de consciência, consistindo este na possibilidade de afinal o caramelo se revelar um pouco rabeta; exacto; bicha, panasca, paneleiro, como se queira designar ou der mais jeito. Em sucedendo tal chatice, no caso muito provável de a moça não apreciar grandemente os maneirismos em geral e as paneleirices em particular, temos o caldo entornado de vez; como todos sabemos perfeitamente, o que mais há por aí é gente com sexualidades alternativas ou, de forma geral, não resolvidas, o que dá origem amiúde a confusões tremendas, para já não falar das consequências psicológicas (e outras) que podem resultar nas extremamente condicionadas cabecinhas das mulheres, das mais balzaquianas às mais escaganifobéticas.

Por fim ou, como se diz em Inglês, láste bat nóte de liste, há ainda a hipótese das hipóteses, o mesmo é dizer o terror dos terrores para as mulheres: que ao gajo ela não agrade. Isso é que é a foda da foda, caralhosmafodam se minto. Não deve haver no mundo uma única chavaleca tão segura de si que nunca tenha sido possuída por tão premente dúvida existencial, antes de ser propriamente possuída: "será que ele vai gostar?" Eis aquilo que supremamente as atormenta: a bem dizer, nós cá o que pretendemos é a pinocada em si, o resto que se foda; se a gaja é podre de boa, e gira, e tal, isso pois com certeza que ajuda, e muito, mas na hora de espetar a farpa - se a hora chega - o pessoal caga positivamente em detalhes; claro que pode suceder não agradar uma qualquer coisinha, um chulézito ou o hálito que fede, excessivo pivete a bacalhau ou odor corporal demasiadamente intenso, mas isso é cheiros; só chateiam depois, durante nem por isso. Mas, para uma mulher, não apenas a primeira pinocada terá de ser por força perfeita, fosse tal coisa possível, como o comensal eleito deverá não manifestar nunca seja que espécie for de desagrado; por exemplo, pode ser que certo chavalo (como é o meu caso, por acaso) não aprecie pêlos, pernas masculinas e sovacos farfalhudos; caso tal aborrecimento suceda, ou por esquecimento ou por falta de vaga na depilação, o mais normal será que o dito cujo se enoje a tal ponto que não consiga sequer - ó desgraça das desgraças, lá voltamos ao princípio - sequer pô-lo em pé. Enfim, há muita merda que pode desagradar, até o nariz (diziam os romanos, esses tontinhos, displiquit nasus tuus), e é isso mesmo que deixa permanente e obsessivamente as mulheres de pé atrás.

E é assim, por conseguinte, recapitulando: se ela hesita ainda, se ainda só vai na fase do implicanço, pode ser que o gajo seja casado, ou tenha namorada, ou seja paneleiro e não sabia, ou seja e sabia, ou seja ligeiramente impotente, ou tenha sido mal dotado pela natureza, ou que seja excessivamente apressadito; em qualquer destes casos, a coisa morre ali mesmo e não há azar; depois, mesmo se ultrapassadas a contento de ambas as partes todas estas barreiras, ainda sobram umas quantas, na perspectiva inversa, ou seja, é a gaja que tem mau hálito, ou cheira mal dos pés, ou é peluda com'ó caralho, ou sofre de flatulência (excessiva), ou tem o hábito de limpar o salão e meter os restos na boca, ou o caralho que o foda que seja e que possa chatear gravemente o moço; seja como for, também do outro lado as possibilidades para que a coisa dê o berro à nascença são enormes.

Mas não nos dispersemos excessivamente, caro J. Claro que tudo isto é possível, é mesmo muito provável, mas não custa nada o amigo - ou qualquer pessoa - armar-se em camelo e fingir que não percebe porra nenhuma daquilo que se está a passar. Vai ver que, dentro de uma semanita ou duas, o mais tardar, tem a "sua" Carolina de volta (esperemos que não recambiada ou devolvida na volta do correio), chorando baba e ranho no ombro do "seu querido Zé". Você até vai ficar comovido com tanta dedicação, afianço-lhe. Às tantas, dará por si a dizer, sem acreditar que é a sua própria boca a proferir tais coisas, que a compreende, que o tal fulano era um grandessíssimo malandro, um vigarista que só a queria comer e...

E aí ela interrompe-o, muito ofendida, e desata a defender o tal fulano, mas com jeitinho, que não é bem assim, que ele até não é vigarista, e que tem se ele a quisesse comer ("fazer amor comigo", dirá ela, em feminês), ora, isso não é natural?

Merdas destas, garanto-lhe, já ouvi eu próprio e assim, ó, à molhada. E de igual calibre e outras semelhantes já me foram contadas por diversas vezes e por diversos gajos tão idiotas, tão crédulos e tão patós como eu fui em tempos. É claro, não espere o amigo que alguma coisa do que a rapariga lhe contar, em tais transes, corresponda minimamente à verdade; mulher alguma admitirá jamais que se enganou de alguma forma; não, não se enganou, foi enganada, o que é bem diferente; e mesmo isso, não é bem, foi tudo mas é um sacana de um equívoco, um mal-entendidozito, porque, bem vistas as coisas, o homem dela é e sempre será aquele que está ali, naquele momento com ela, como em todas as horas, boas e más mas principalmente nas más. Após esta parte da rapsódia, o amigo não se surpreenda quando ela desatar a chorar convulsivamente; tente compreender, já que é tão companheiro, que as carolinas deste mundo choram (ou riem) por dá cá aquela palha, faz parte da encenação que sempre acompanha a mulher fatal, e também as não tão fatais como isso. Ora, desatando-se ela num pranto de partir o coração, e sendo o Zezinho bom rapaz, amigo dedicado e alminha sensível, certamente a tentará consolar, reconfortar, acarinhar, e tal, e tal, e tal; dir-lhe-á umas palavrinhas animadoras e revigorantes, passar-lhe-á romanticamente as mãos pelo cabelo, limpar-lhe-á talvez as lágrimas com o seu próprio lenço; e acabará fatalmente a oferecer-lhe aquilo que a si parecerá ser a maior, a mais fabulosa, a mais homérica pinocada da História. Reconciliados, amansada a fera do ciúme em si e aplacada a do tesão nela, vai ver como as coisas correm no melhor dos mundos.

Enfim, a ser este o caso, cumprindo-se em rigor o cálculo de probabilidades mais optimista, conte com uma seca prévia, coisa para longas e penosas horas, talvez uma noite inteira; mas depois virá a recompensa, que diabo, sempre é uma "vingancinha" nada desprezível, e sempre terá a "sua" namorada de volta, ao menos até ver, ou até à próxima "paixão" que a ela atacar as partes baixas ou que a si mesmo faça já não a poder ver.

Se, pelo contrário, nada disto suceder durante as próximas semanas, e se bem que este tipo de aborrecimentos tenha um prazo de validade bastante dilatado, se ela pura e simplesmente desaparecer da circulação e nunca mais lhe passar cartão, bem, então diga-lhe adeus e parta para outra, como dizem os brasileiros. Se isso realmente suceder, esperemos que não se ponha você com merdas. Gaja que se "apaixona", que se mete debaixo de outro gajo e este corresponde à "paixão", meu amigo, fodeu: você já era ou, melhor dizendo, nunca existiu. Quando muito, na sua qualidade de "ex" - o conjunto de letras mais fodido do mundo - e se porventura a miúda falar de si a alguém, será você o "erro", o "equívoco"; muita sorte se ela não lhe passar a si publicamente um atestado de incompetência, ou se, vá lá, não lhe der roda de paneleiro, cabrão, filho-da-puta, gatuno, chulo, etc. A imaginação da mulher que descarta é infinita... e muitíssimo criativa. Para esse tipo de merdas, diz-se, está-se a gente bem cagando, mas sempre lhe digo que se pode tornar extremamente desagradável o ambiente para o descartado; alguns amiguinhos seus vão deixar de o ser, sem você fazer a mais pequena ideia do motivo ou, pior ainda, fazendo essa pequena ideia e não podendo sequer reagir. Porque, desengane-se o J. se julga outra coisa, gajo que levou c'os pés leva também em cima, imediatamente, com tudo o que há de pior na natureza masculina: não apenas fica a falar sozinho, em sentido literal, como será altamente gozado pelas costas (ou em plenas trombas, por vezes), excluído das noitadas, das cartadas e dos copos, rapidamente se transformando numa espécie de pária lá do bairro, passando a carregar a cruz dos "tristes" - equivalente à condição de alienígena em qualquer grupo de primatas.

Caso se confirme realmente o pior dos cenários - o qual, na minha modesta opinião, é o melhor para si, mas já lá iremos - então não valerá sequer a pena ficar o amigo magicando no assunto. Que se foda, chefinho. Você não quer, de certeza absoluta, saber o que estarão nesse caso aqueles dois a fazer. Bom, não quer o amigo saber mas, como eu também sou muito seu amigo, quanto mais não seja por solidariedade existencial, vou dizer-lhe: tudo o que essa Carolina lhe disse a si, aquelas coisas maravilhosas e únicas, vai dizer ao outro exactamente da mesma forma; todas as meiguices e segredos que lhe soprava ao ouvido, durante aqueles momentos maravilhosos e inesquecíveis que passaram, vão passar para a orelhinha do outro, igualmente, sensualmente sussurradas, e será com ele que ela passará momentos não menos maravilhosos e inesquecíveis, depois de arquivar meticulosamente tudo o que fez consigo; uma história de meses ou anos de momentos sublimes, com aquela pessoa, resultarão fatalmente em sublimes momentos dessa mesma pessoa com outra pessoa; o ninho de amor, que ambos criaram com mimo e dedicação, será transladado para outro local, quem sabe com as mesmíssimas almofadas e os mesmos bibelots; ou então, esse ninho edílico não mudará de local mas simplesmente de inquilino; você, que era o máximo (e todos os outros umas bestas), passará a ser uma das bestas (e o outro o máximo dos máximos). Muito provavelmente, e não vale a pena abusar, a "sua" Carolina experimentará com o novo chavalo de cobrição tudo aquilo que dizia antes serem "porcarias". Enfim. O chamado Amor é, ao contrário do mais manhoso cartão-de-crédito, algo de impessoal e de absolutamente transmissível. Portanto, há que tirar os cavalinhos da chuva quanto antes, não vão eles apanhar alguma constipação, isto é, a gente (neste caso, você mesmo) ensandecer.

Mas não há-de ser nada, amigo Zé. Acredite no que lhe digo, que já cá ando há uns tempos valentes. Ela volta com o rabinho entre as pernas, esteja descansado. Ficou enrabichada lá pelo outro, pronto, e isso que tem? Você, como é, não se atira a tudo quanto é gaja, lá no seu serviço? E mesmo na rua, ou numa discoteca, ou assim, você é gajo para ficar indiferente a uma bela peidola, você resiste a um par de mamas espantoso, ou não fica cheio de entusiasmos com uma simples saia tipo colarinho? Ora, ora, deixe-se de merdas; claro que não fica indiferente, não resiste e entusiasma-se, respectiva e competentemente. Pois às mulheres outro tanto sucede, aí tem. Nada a assinalar. A diferença é que nós não precisamos nem de pretextos nem de explicações para dar uma fodinha numa gaja qualquer, mas elas acham que precisam; absolutamente; são milénios de informação genética, naquelas veias e em todos os interstícios dos seus delicados seres, compelindo-as a transformar qualquer corrimento no mais sublime sentimento, toda a atracção na mais pura, radical e definitiva paixão. É estúpido e irrelevante, bem sabemos, mas é assim e não há nada a fazer.

Repare que, mesmo correndo a coisa pelo melhor, ou aquilo que você neste momento pensará ser o melhor, é tudo uma questão de tempo até ao apodrecimento total. Porque o veneno da desconfiança já foi instilado, já está instalado, e isso é um processo irreversível. Mais tarde ou mais cedo, mesmo que haja uma reconciliação bacana, supimpa, mesmo que você lhe proporcione finalmente não sei quantos orgasmos por dia, e por mais apaixonada que ela então se revele, o facto é que nunca mais as coisas poderão voltar a ser como dantes. O veneno há-de insinuar-se fatalmente no seu espírito, espalhar-se por todas as suas veias, e músculos, por todas as células físicas do seu ser e por todas as partículas do seu espírito. E, um dia, qualquer dia, não restará nada senão matéria putrefacta, não apenas tecidos mas também memórias, ideias, sentimentos, tudo destruído, definitivamente inquinado, irremediavelmente destruído.

Por isto lhe dizia antes, meu amigo, que o melhor ainda seria deixá-la ir. Ela que se foda, amigo, e que lhe faça muito bom proveito. Bem sei que não me conhece de lado nenhum, a não ser daqui, mas deixe-me que lhe diga de coração aberto: puta que pariu a Carolina. Ouviu? Quem me avisa... e tal.

Olhe, faça o seguinte: faça um arrozinho. Vá para a cozinha e prepare um belo de um petisco. Eis a receita para os males de amor: uma receita de cozinha.

Arranje uma galinha do campo, bem gorda, e ponha-a a cozer numa panela de pressão, com sal marinho não tratado. Prepare um refogado bem puxado, em tacho de ferro fundido, com cebolas ácidas; acrescente alho cegado quando a cebola estiver acastanhada; meta-lhe pimento, tomate, salsa e coentros; quando estiver bem apurado, junte três ou quatro copos do melhor vinho branco que tiver; com a galinha bem cozida, trinche à mão e ponha no refogado, regando com a água da cozedura; tempere bem e forte, com flor de sal, pimenta branca e cominhos a gosto; deixe apurar em lume brando; por fim, junte duas mancheias de arroz, tape e espere que fique "al dente", com o cuidado de não deixar secar a arrozada; "malandrinho" sim, mas não muito. Sirva-se generosamente, acompanhando com Grandjó bem fresco, de preferência estupidamente gelado. Retire do congelador o Häagen-Dazs de chocolate belga, para sobremesa. E bom apetite.

Evidentemente, escusado será dizer, o arroz para esta receita apenas poderá ser carolino. Se não, fica uma tremenda bosta.

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18/12/06

O pó é fodido

Como ele é ver para crer, fui ver o que se diz por aí sobre a entrevista do MEC no DN da última 6ª Feira. Diz-se pouca coisa. Assim de repente, encontrei isto:

Miguel Esteves Cardoso é um dos nossos grandes valores e está arredado da TV e da rádio. Temo-lo semanalmente na revista Única do Expresso mas não basta.
Mar Cáustico

"Arredado"? Fónix. E quem é que foi o malandro que o "arredou", a nosso Professor Doutor? Ou terá sido ele mesmo a "arredar-se" a si próprio?

Mas alguém sabia que o homem aviava três garrafas de Vodka por dia, só por desfastio, mais umas quantas litradas de tudo quanto é bebível e mete graduação? Caramba, era só eu, no país inteiro, o único ceguinho que não fazia a mais pequena ideia de tal coisa? E sobre a cocaína? Também toda a gente já sabia? Caralho! Eu cá não fazia a mínima!

E, no fim de contas, mas o que raio terei eu a ver como assunto? Hem, ó caramelo: mas quem te julgas tu para estares agora a debitar lições de moral às pessoas de bem? Quem és tu para recriminar seja quem for, e de mais a mais em se tratando de tão eminente cachola? Hã? Dize.

Pois, 'tá bem, eu digo. É uma traição. Ora aí está. Uma estuporada de uma traição, é o que é. Acho que já por mais de uma vez aqui escrevi coisas como "Miguel Esteves Cardoso é, sem sombra de dúvida, o melhor cronista português vivo"; escrevi e disse-o, repetidamente, em conversas de café e coisas assim, com a maior displicência, convencido até à medula da infalibilidade de tão radical juízo. É claro que, se ao menos a mais leve suspeita alguma vez tivesse aflorado ao meu desgraçadamente ingénuo espírito, nunca, mas nunca por nunca, teria proferido ou despachado tais sentenças. E atão porquê, perguntareis vós, ó espíritos das sombras. Mas, atão, responderei meio abananado, mas não se está mesmo a ver?

Claro que é indecente responder a uma questão com uma pergunta, porém essa contém a resposta quase toda e abre caminho a mais umas quantas: o MEC metido na coca? O MEC, o "nosso" MEC, a snifar por uma nota de 200? Que enfarde umas grades de bebidas espirituosas todos os dias, vá lá, enfim, não sabia mas pronto, seria talvez daí que lhe vinham as tiradas não menos espirituosas; agora andar agarrado ao pó, pelos vistos desde há décadas, e "meter" toda a sorte de drogas ("menos haxixe e heroína", segundo diz), foda-se, tenham lá paciência, santinhos, isso não! Para trás, Satanás! Mas o que caralho vem a ser isso, não me dirão? Afinal aquela verve toda andava a "pitroil" e carburava à base de anfetaminas e opiáceos? Então e é este o gajo todo contentinho com a maravilha que Portugal é, e o nosso clima, ó que grande clima, e que as coisas aqui até funcionam que é um espanto, e tal e tal? Bem, mas não seria esse contentamento, esse orgulho patriótico, essa alegria ufana e vagamente contagiante, um simples subproduto da moca permanente? Não andaria ele todo feliz, radiante, não apenas porque nunca lhe faltou nada (coisa com a qual, esta, de facto ninguém tem nada a ver), mas principalmente derivado ao facto de estar constantemente pedrado?

Mas a traição não reside na etiologia clínica da questão; é mais na enologia; não se trata propriamente do seu carácter claramente ilícito, mas na sua total, absoluta, absurda impunidade: coisas que fariam corar de vergonha qualquer bacano das Marianas ou do Casal Ventoso são escarrapachadas na praça pública, num meio de comunicação nacional, não apenas às claras, pois perfeitamente, mas também - e isso é que é grave - veiculadas por uma figura pública, um privilegiado notório, alguém que representa (de alguma forma, e quer queira quer não) um modelo para franjas significativas da intelectualidade nacional. A imagem que esta figura passa é clara e transparente: eu sou Fulano De Tal, como bem sabeis vós outros, aí em baixo, sou podre de rico, sempre fui, e sou tão feliz que até enerva, e sou assim, numa palavra, o maior, porque fiz durante quase toda a minha vida uma dieta rigorosa de Vodka e de cocaína. As drogas, o álcool, o enfardanço absolutamente alarve e sistemático de tudo e mais alguma coisa, a grande farra como modo de vida aparece agora branqueado (para condizer com as substâncias), promovido a valor existencial e a fim em si. Diz o rapaz que tem muita pena de ter fodido o fígado todo, e que o erro é que devia ter, ao longo de anos e anos, mandado abaixo não três mas apenas uma garrafa de vodka diariamente; ou seja, uma litrada é que deve ser, nada de exageros, por conseguinte; e pressupõe-se, assim sendo, que lá isso da coca é brincadeira, não faz mal nenhum, só uns fiozinhos de sangue a pingar do nariz, e assim.

A traição não consiste, ou não se deve, propriamente, ao facto de o MEC fazer propaganda às substâncias tóxicas enquanto receita para o sucesso. Claro que é isso mesmo que a juventude irá pensar, olha, vês este gajo, emborcou e meteu tudo quanto há e é o maior, o verdadeiro pintas; mas ninguém poderá culpar o ídolo, a referência, por qualquer hipotética imbecilidade que as suas palavras possam provocar em cabecinhas mais empoeiradas. Não é traição, sequer, por o fodidíssimo autor não mostrar nunca o mais leve arrependimento e, pior ainda, apresentar os seus vícios vários como algo de "giro", como sendo "coisas com imensa piada, ahahah, távê-távê-távêre"; isso que se foda, assim com'ássim. Também não é traição o facto de o caramelo ter hoje tudo, como sempre teve, nunca lhe faltou nada e mesmo assim ainda achava que era pouco; que se dane o facto de, mesmo não havendo qualquer diferença técnica entre este janado e um qualquer pobre diabo que anda a arrumar carros, o mesmo janado não ser considerado tão marginal quanto o outro; como não tem qualquer espécie de necessidade para se manter pedrado e, portanto, não é forçado a assaltar casas e pessoas, deixa de ser ladrão e assaltante e meliante, passa à condição de grande cachola, esperto que nem um alho, supra-sumo da intelectualidade. Pois, afinal não assaltava ninguém na via pública, não roubava sequer carteiras, mas atacava por escrito, desancava com extrema violência qualquer figura pública, usava figuras de estilo destiladas com ácido, esgrimia argumentos sacados em plena alucinação; afinal, qual génio nem meio génio, o homem era apenas especialista em psicotrópicos, era um génio alucinogénio. "A Causa das Coisas", pelos vistos, foi por causa das coisas que ele andava a meter. Se "O Amor é Fodido", coisa que já se sabia, o pó é muitíssimo mais estuporado, ficamos agora mesmo a saber.

Findemos, pois. A traição consiste nisto: eu cá não sabia. E, porque não sabia, lia o que o gajo escrevia; gostava do que lia; recomendava aquela merda, caralhosmafodam. Já se sabe que não há nada a perdoar a um imbecil daquele calibre, mas eu cá a mim é que não me perdoo. Foda-se. Eu que me vá encher de moscas. Burro do caralho. E como diabo foi possível nem sequer ter desconfiado? Caramba, agora vejo, vejo tudo, fez-se luz finalmente nesta cabecinha de alho chocho: "em Portugal, as coisas funcionam" significa, em metalinguagem atestada de octanagem, "ena, meu, tou c'uma moca que vejo tudo a andar à roda, isto é tudo lindo, pá, olha só, que bela posta de pescada, esta lata de atum, hmmm, ó maravilha das maravilhas"; frases lapidares, que o recém-adquirido pudor me impede de citar, provinham da bonomia, da calma extrema, da paulada na cabeça sacramental que é, por definição e beatitude, a atitude e a condição de qualquer tipo que se emborrache meticulosamente; para a produção em massa de joguinhos de palavras, e artistices que tais, quaisquer duas ou três snifadelas bastariam, ao menos por umas quantas horas; como preparação para as entrevistas, ou para aparições públicas em geral, aquilo era meter uns quantos speeds e empinar umas dúzias de citações cheias de pinta; juntamente com a bagagem cultural da ordem, além dos canudos académicos, seria então conveniente não esquecer a outra bagagem, os sacos do pó, as caixas de comprimidos, as garrafinhas de pomada e em especial os frasquinhos de lança-perfume.

Tudo nos melhores dos mundos, e com tudo do melhor. Muito contente consigo mesmo, entupido de sucesso editorial, de sucesso existencial e de sucesso em geral, aconteceu um dia ter o MEC esquecido a sua pessoa algures; talvez metida em algum canto escuro, talvez perdida enquanto procurava a própria sombra, ninguém sabe ao certo o que se passou. O que é certo, isso sim, é que essa pessoa não faz já falta alguma a ninguém. Nem sequer ao próprio MEC ou, pelo menos, àquilo em que se transformou.

Joana, querida, chega-me daí os fósforos, please.

Thank you.



Este post tem direito a post scriptum

Um blog "que dá pelo nome de" A Invenção de Morel publicou a entrevista na íntegra. Ó prós comentários às bojardas do MEC, ó:

Uma entrevista extraordinária. Parabéns!!!
Posted by: Matilde Rocha | dezembro 21, 2006 01:37 PM

uma entrevista ilucidativa de um estado de espirito sábio. pena, que primeiro tivesse que passar pelos exageros para chegar a esta conclusão!
é interessante este Miguel Esteves Cardoso!
Posted by: ana maria costa | dezembro 21, 2006 02:42 PM

Que máximo, adorei!
Fiquei cheia de esperança de chegar aos cinquenta anos assim, a saber ainda melhor aproveitar o bom que viver nos dá.
E também fiquei cheia de vontade de comer laranjas...
Posted by: Li2 | dezembro 21, 2006 02:44 PM


Algumas perplexidades, porém, contudo, no entanto, e dúvidas a bem dizer.
a) A quem endereçará sua Matilde seus parabéns? Ao autor da transcrição? Terá sido este o "extraordinário" autor de tão "extraordinária" conversinha?
b) Fez muito bem sua Ana Maria em inventar um novo adjectivo para qualificar a entrevista; de facto, "ilucidativa", a julgar pelo prefixo de negação, é o contrário de elucidativa. Admiradora certamente feroz de son mec, pois não terá lido muitas coisas na vida, nem sequer de seu "sábio" estado de "espirito". Mas, vá lá, conseguiu redigir o nome de son mec sem erros, esta Maria.
c) Li2, de sua graça, confessa que ficou de apetites às laranjas; mas não seria antes aos limões? É mais adequado para fazer os caldos, certo? E tem muita vitamina C...

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Conta-me histórias

Tudo serve aos antitabagistas militantes para "justificar" a sanha persecutória e histérica que se transformou no seu modo de vida. Como é de facto indefensável, o tabaco, o acto de fumar, o cigarrinho torna-se alvo facílimo para o tiro ao boneco político; e é por isso que todas as mentiras e alarvidades passam absolutamente nas calmas para a opinião pública, já anestesiada pela persistência do logro, já desistente de qualquer espécie de reacção. Aliás, chegámos a um ponto de anestesia tal, na opinião pública e, principalmente, na "opinião" juvenil, que o fumo (do cigarro), ao contrário das chamadas drogas leves, é considerado um crime real, enquanto o consumo de drogas é não apenas despenalizado como incentivado, apoiado e mesmo financiado.

Tornou-se comum uma espécie de pensamento acéfalo, por paradoxal que pareça, fundamentado em falsidades tão gigantescas quanto evidentes, das quais a mais esgrimida é a respeito dos preços: o Governo português, na sua longa marcha por uma vidinha cheia de saúde, vai aumentando os impostos sobre o tabaco de forma perfeitamente abstrusa, alegando que pretende apenas reduzir o consumo e, portanto, presume-se, diminuir a incidência de cancro do pulmão e aborrecimentos conexos na população em geral e nos "fumadores passivos" em particular.

É comovente, de facto, esta preocupação que o Estado manifesta quanto ao estado de conservação dos alvéolos pulmonares do cidadão comum; pessoalmente, sinto-me tocado sempre que alguma pessoa mais intoxicada pela propaganda me recorda os malefícios do tabaco sobre a saúde; acho um pouco estranho que tanto o Estado como essas pessoas se preocupem em exclusivo com esse meu problema, e que se estejam, em absoluto e como lhes compete, totalmente nas tintas para qualquer outro dos meus problemas, de saúde ou quaisquer que sejam; estranho é dizer pouco, mas enfim, lá que é tocante, repito, é. A minha gratidão não tem limites, e por isso cá vou pagando os sucessivos, caninos, assassinos aumentos de preços, sabendo que se trata de algo altruísta, uma coisa que é feita a pensar em mim, na minha saúde, e que é para meu bem, e tal. Só posso realmente ficar muito agradecido, até porque, se me estão roubando por tão meritórios motivos, o roubo deixa de ser roubo e passa a ser obra de caridade.

Mas, por mais grato que me sinta, o que ainda não consegui entender é como se pode mentir com tamanha desfaçatez sem que praticamente ninguém ouse sequer tugir ou mugir. Quando algum militante mais dedicado, ou quando alguma organização ou responsável governamental vem dizer que os cigarros são muito mais baratos em Portugal do que, por exemplo, em Inglaterra ou na Finlândia, está a mentir descaradamente: o nosso belo país, onde o clima é ameno, etc., está em 2º lugar - a nível europeu - na incidência de impostos sobre os produtos fumáveis (86%), exceptuando-se destes as substâncias teoricamente ilícitas, sobre as quais não há dados concretos. Por outro lado, Portugal é dos países europeus com salários mínimos mais baixos, em termos absolutos.

Logo, e como é curial quando se fala dos preços da gasolina ou de qualquer produto hortícola, ou seja do que for, o custo de um bem ou serviço deve ser comparado de forma ponderada, por unidades (paridades, PPC) de poder de compra; técnica estatística, no entanto, passível de alguma manipulação e que é neste caso muito habilmente utilizada pela própria Comissão Europeia, no sentido de provar não se percebe bem o quê.

Talvez o mais curial (e rigoroso) seja determinar o custo real do "maldito vício" tendo por base o salário mínimo; assim se poderá aferir, com exactidão, quanto custa, proporcionalmente, o mesmo maço de cigarros nos diversos países da UE. Pois, como é lógico, comparar preços e incidência de impostos de forma totalmente cega, sem relativização e enquadramento, é uma evidente manobra de propaganda, tão falaciosa como a contabilidade de qualquer vendedor de "banha da cobra". Se um maço de Marlboro custa, em Inglaterra, por hipótese o equivalente a 8 €, sendo o ordenado mínimo nesse país qualquer coisa como 1.500 €, então aquele custo representará 0,53% do rendimento; se em Portugal a mesma marca custar 2,80 €, para um ordenado mínimo de 380 €, a taxa de esforço (para a compra) correspondente é de 0,74%; isto é, comparando os dois valores temos que o mesmo produto é 40% mais caro em Portugal do que na Inglaterra.

Mesmo com alguns valores presumidos, por analogia, e apenas para comprovar a hipocrisia e as mentiras oficiais, pondo em causa em toda a linha o princípio que preside à falácia governamental, comparemos alhos com alhos e não alhos com bugalhos; para que se possa aferir mais facilmente da enormidade que representa este assalto institucional, estendamos a comparação aos países da Europa a 25.

País
S.M.N.
€/maço
Mês
Encargo
Diferença
Variação
maço/SMN
Portugal4032,80 €84,00 €20,84%0,00%100,00%2,80 €
Reino Unido11037,70 €231,00 €20,94%0,10%100,48%2,81 €
Finlândia18004,00 €120,00 €6,67%-14,18%31,98%0,90 €
Espanha5262,26 €67,80 €12,89%-7,95%61,84%1,73 €
Grécia6051,40 €42,00 €6,94%-13,90%33,31%0,93 €
França11545,00 €150,00 €13,00%-7,85%62,36%1,75 €
Irlanda12938,00 €240,00 €18,56%-2,28%89,05%2,49 €
Luxemburgo15037,00 €210,00 €13,97%-6,87%67,03%1,88 €
Itália12003,10 €93,00 €7,75%-13,09%37,18%1,04 €
Estónia1921,05 €31,50 €16,41%-4,44%78,71%2,20 €
Letónia1290,64 €19,20 €14,88%-5,96%71,41%2,00 €
Lituânia1590,77 €23,10 €14,53%-6,32%69,70%1,95 €
Polónia2340,88 €26,40 €11,28%-9,56%54,13%1,52 €
Bélgica12343,36 €100,80 €8,17%-12,68%39,19%1,10 €
Holanda12734,00 €120,00 €9,43%-11,42%45,23%1,27 €
Rep. Checa2611,32 €39,60 €15,17%-5,67%72,79%2,04 €
Eslovénia5121,49 €44,70 €8,73%-12,11%41,89%1,17 €
Malta5803,03 €90,90 €15,67%-5,17%75,19%2,11 €
Hungria2471,58 €47,40 €19,19%-1,65%92,07%2,58 €
Eslováquia1831,08 €32,40 €17,70%-3,14%84,94%2,38 €
Chipre(*)6002,22 €66,60 €11,10%-9,74%53,25%1,49 €
Áustria(*)12503,00 €90,00 €7,20%-13,64%34,54%0,97 €
Suécia(*)13004,11 €123,30 €9,48%-11,36%45,50%1,27 €
Alemanha(*)14003,37 €101,10 €7,22%-13,62%34,65%0,97 €
Média797,543,048391,45 €11,47%-9,38%55,01%1,54 €
(*) - salário mínimo presumido.
Fontes
http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=223426&idselect=11&idCanal=11&p=200
http://www.day-tripper.net/tobaccointheeuother.html
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/6158762.stm
Não foram encontrados dados sobre a Dinamarca.



Mesmo para o mais limitado dos tecnocratas, não deve ser muito difícil entender os resultados: Portugal tem os cigarros mais caros da Europa, na honrosa companhia da Velha Albion, esse paraíso politicamente correcto; será talvez por causa da tão velha quanto inútil aliança entre os dois países, que tantas alegrias tem dado a ambas as partes. Qualquer espanhol ganha muito mais do que nós, cá no torrão, e o sacana ainda por cima tem o cigarrito ao preço da uva mijona, fora o resto, desde os caramelos ao presunto, passando pela electricidade, a gasolina e outros luxos, como o pão; ir passar um fim-de-semana à Letónia e comprar uns trinta maços (600 cigarros é o limite alfandegário normal), bem, a diferença deve dar para pagar uma alta jantarada num restaurante de cinco estrelas, em Riga; com o nível de vida da Áustria, notavelmente modesto, como sabemos, o equivalente a um SG Gigante custaria cá a módica quantia de 97 cêntimos, quase um terço do que nos custa a nós outros, ricaços. Até na Irlanda, triste recordista europeu, mundial e de todo o sistema solar, nas mais duras modalidades da fantochada contra-fumaica, até mesmo aí o macito é relativamente mais barato do que para os fumadores tugas. Ah, e a Bélgica, a Bélgica: coitadinhos, lá têm de pagar 100 pauzitos dos antigos, a mais do que a gente, e só ganham o triplo, pobrezitos, olha que realmente.

É mentira que seja mais caro fumar "lá fora" do que "cá dentro". Mentira. Redonda. É tudo falso, mais falso do que uma nota de três dólares; os impostos sobre o tabaco servem exclusivamente para tapar buracos orçamentais, não existindo obviamente nenhuma preocupação sanitária envolvida, e muito menos qualquer espécie de altruísmo na questão. É roubo sob pretexto inventado, nada mais. É puro saque à população, ainda por cima a pedido de largas franjas dessa mesma população. É um verdadeiro golpe, não de mas do Estado, escorado por ingénuos descomprometidos e sustentado por fazedores de opinião nada ingénuos e absolutamente nada descomprometidos. O que se pretende não é, de forma alguma, reduzir o consumo, ou proteger os direitos dos "fumadores passivos" ou qualquer dos chavões utilizados para legitimar o desfalque perpretado pelo Estado. Como dizia o outro, é fazer as contas, de mais a mais porque as contas já estão feitas.

Existem inúmeros sites na internet para comprar tabaco, na maior parte dos casos a preços perfeitamente ridículos, quando comparados com o roubo estatal que nos querem impingir como sendo "para nosso bem". O contrabando de cigarros está vivo e recomenda-se; basta conferir com os números oficiais, que demonstram a falência histórica da taxação abusiva; querem fazer-nos crer que a suposta santa luta antitabagista está a resultar, mas o que se passa é que o contrabando (e a contrafacção) estão de novo pujantes, aproveitando a evidente estupidez das entidades e a não menos cretina credulidade dos novos apóstolos da "saúde" à força e a qualquer preço. Vão ter um lindo enterro, vão sim senhor; cá estaremos para ver, placidamente fumando o nosso belo cigarrinho. O futuro das medidas "para combater o fumo" já chegou: ardeu. Arde cada vez mais em cada "pirisca" de um cigarro contrabandeado, de cada Lucky Strike made in China. Esse futuro chega todos os dias, por terra, mar e ar, ameaçando já soterrar em cinzas (e em "beatas") toda a nação não fumadora, aqueles que serão em breve cadáveres extremamente saudáveis.

Quanto aos sádicos, cruzados da proibição, perseguidores de bruxas fumegantes, amadores da causa ar-purista e quejandos, há que desejar-lhes sinceramente os maiores sucessos em suas inestimáveis vidinhas; agora já sabem onde devem meter a sua lógica dos "maços a cinco ou mesmo a 10 euros": where the sun never shines, como soe dizer-se.

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16/12/06

Notepad

Os segredos são como os cromos: há os ruins e há os repetidos, que não têm qualquer valor.

O "amor à camisola" ganha outro sainete e outra mística quando esta tem os seguintes dizeres: "Banco Espírito Santo".

A sanha anti-tabágica é de tal forma... assanhada, que ainda havemos de assistir à proibição do "smoking" como traje de gala; e então o mais correcto será levar um fato de risquinhas para qualquer merda de mais cerimónia.

Os condenados à morte vão ter de prescindir do cigarro, como último desejo; agora terão de escolher coisas mais saudáveis, como mascar uma última pastilha-elástica ou beber um último copinho de leite morno, por exemplo. Presume-se que muitos preferirão de imediato o tiro nos cornos.

Há duas espécies de militante anti-aborto: aquele que sabe do que fala e o que finge que não sabe.

Se um grupo de estudantes comer à grande e à francesa, num restaurante, terá direito a não pagar a conta alegando que "não pagamos, não pagamos"?

Quando não gosto de ti, isso quer dizer que não gosto de ti ou apenas que gosto, sim, mas só às vezes?

Existe uma grande diferença entre ser e não ser: depende.

Antigamente, era muito mais fácil e divertido ser engraçado; agora, não apenas é necessário conhecer alguém influente, como ter piada também ajuda.

Qual é o cúmulo do esquecimento? Não me lembro.

O sucesso do poeta varia na razão inversa da sua capacidade gramatical e na directa da sua tolerância ao álcool.

O MEC não passa, afinal, de um gajo "janado", alcoólico e pateta alegre. Foda-se. O cronismo está de luto por causa não de uma mas de três doenças crónicas.

Sempre que me sinto cansado, muito cansado, ponho-me a dormir. Quando estou a cair de sono, mas mesmo exausto, não consigo adormecer. Há aqui alguma coisa que me ultrapassa.

A mulher mais bonita, mais inteligente, mais brilhante e boazona que tive a oportunidade de conhecer, em toda a minha vida, agora é um caco ambulante. Isto deve querer dizer alguma coisa. Investigar os termos "caco", "ambulante" e "boazona".

Todos somos filhos de Deus, mas isso é só em princípio.

Se um ditado popular é a verdadeira voz do povo, será que afinal o povo de vez em quando acerta? Ou deve-se cagar pura e simplesmente para essas coisas, em podendo?

Quando me dói a alma, será certamente porque algo me magoou seriamente. Quando me dói a barriga também, ou isso "é mais bolos"?

Ouve, vou dizer-te uma coisa muito séria: uma coisa muito séria. Topas?

Como se costuma dizer, perguntar não ofende. Mas se eu perguntar, por exemplo, "olha lá, tu és algum filho-da-puta, ou quê", isso ofende ou não ofende? Ah, não? Tá bem.

Epitáfio de Manoel de Oliveira: Cine Qua Non (Cinema Assim, Não).

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14/12/06

Um blog pelo NIM

Não
Desde que foram inventadas coisas tão interessantes como o "planeamento familiar" e o "direito à igualdade entre os sexos", ter um filho deixou de ser um acto natural e passou automaticamente à categoria de simples acto administrativo; um outro artifício colateral, como sempre promovido pelas camadas mais esclarecidas e bondosas das populações, ternurentamente designado como "paridade", veio revestir de forma legal o direito de parir ou de não parir, concedendo a metade dos seres-humanos, as mulheres, o poder discricionário de escolha absoluta na matéria; a outra metade, os homens, deixa assim de ter voto nessa mesma matéria, remetendo-se definitivamente à sua insignificância histórica e biológica e limitando-se à sua condição básica de produtores e fornecedores de material genético; isto, é claro, enquanto não se arranja alternativa para tão irrelevante parceria.

Utilizando uma terminologia porventura menos técnica, e optando por uma outra mais futebolística e, portanto, de muito mais fácil digestão, digamos que estão actualmente reunidas as condições para que o acto de procriar dependa exclusivamente da vontade individual; isto é, engravidar deixa de ser uma consequência natural do acto sexual, sendo a finalidade exclusiva deste a fruição do prazer, passando a fecundação a depender de uma "decisão" que será tomada - exclusivamente - pela mulher. De onde se conclui que os métodos contraceptivos, largamente difundidos desde meados do século passado, deixam agora de fazer qualquer sentido; se ainda se mantêm, se ainda alguém os utiliza, isso deve-se a mero comodismo, ou a agudíssima pragmática existencial, já que tomar a pílula é uma actividade bastante menos maçadora do que abortar - pelo menos, quanto ao aborto cirúrgico, porque os métodos abortivos químicos não diferem grandemente, em penosidade, da muito prática tarefa de engolir um comprimido.

Estamos de facto perante uma verdadeira revolução, não apenas de um ponto de vista sociológico mas, principalmente, numa perspectiva biológica; ainda não é a erradicação total da componente animal na espécie humana, ainda continuamos a ter necessidades fisiológicas básicas, comer, beber, urinar, defecar, mas a necessidade, o impulso, aquilo a que alguns chamam instinto reprodutor deixa de ser inerente à nossa espécie; ao contrário de todas as outras, desde os mamíferos aos insectos, têm agora os humanos ou, em rigor, metade dos humanos, o poder de decidir se uma fecundação é ou não viável, deve efectuar-se ou não; e, em última análise, se ainda assim a Natureza ultrapassar todas as barreiras artificialmente criadas, se ou no caso de todos os métodos anticoncepcionais falharem, então proceder-se-á a uma remoção cirúrgica do ser cuja formação terá sido meramente acidental. Discussões mais ou menos filosóficas, mais ou menos académicas e retóricas, sobre a fronteira temporal que delimita a viabilidade (legal, não técnica) daquela remoção serão de todo irrelevantes, já que o facto em si permanece: existe remoção, extracção, ablação daquilo que, em circunstâncias normais, viria a tornar-se um indivíduo; às duas ou às seis semanas, aos três meses ou até imediatamente antes do parto iminente, o acto abortivo é, por definição, rigorosamente a mesma coisa; a pressuposta reserva moral consiste mais na maior ou menor facilidade de verificação do que em qualquer destrinça técnica - torna-se bastante mais fácil aceitar o "produto" de um aborto com algumas semanas de gestação, uma massa sanguínea indestrinçável a olho nu, do que observar os membros e as vísceras estraçalhadas de um feto com alguns meses. A questão "moral" do acto abortivo dependerá, por conseguinte, da medida da capacidade individual de encaixe face ao horror, e não da medida do horror em si.

É, de facto, visualmente aceitável que um minúsculo rolo de gaze seja atirado para um balde cirúrgico; ao fim e ao cabo, aquele resto é do tamanho do que sobra de uma apendicectomia, por exemplo, e poderia passar perfeitamente por tão simples e irrelevante e dispensável apêndice. Para uma mulher distinguir as partes em formação do embrião que acabou de lhe ser extraído, e dependendo obviamente do estágio de desenvolvimento deste, seria necessário não apenas utilizar um bom microscópio, ou potentíssima lente de aumentar, como dispor de um sistema nervoso absolutamente glacial. Já o resultado de raspagem ou de aspiração, ou de ambas as técnicas combinadas, se fosse mostrado à ex-progenitora poderia causar nela estragos de várias etiologias, e não apenas a nível neurológico. Não competirá ao Estado, ou às empresas e aos profissionais que se dedicam à actividade, a tarefa - quiçá pedagógica - de mostrar à mulher que abortou aquilo que sobrou, e também não será de esperar que uma ou outra possua um nível de curiosidade tão elevado; ao fim e ao cabo, não estamos a falar propriamente de extrair um dente, sequer um quisto sebáceo, coisas que, mesmo essas, muito raramente são mostradas a quem delas se vê livre, e é portanto natural que - de mais a mais numa ocasião tão sensível - outro tanto suceda com aquele tipo de lixo hospitalar. Há que preservar alguma sanidade mental, mesmo ou principalmente quando o horror se banaliza, e a isso obriga também a algum módico de recato e a alguma higiene visual.

Do mesmo modo que ninguém deseja uma dor de dentes, ou que ninguém aprecia particularmente criar, por exemplo, uma bela pedra no rim e, com ela, sofrer dores insuportáveis, também poderá ser compreensível que se não deseje em certo momento uma gravidez, que uma criança nasça em determinadas circunstâncias. O problema é que uma criança não é propriamente um dente cariado ou uma excrescência calcária; um feto não é algo que se retire simplesmente com o auxílio de instrumentos cirúrgicos e se atire para o balde dos despejos com um suspiro de alívio. São coisas diferentes, obviamente, e por isso não podem nem devem ser encaradas como similares, obedecendo aos mesmos princípios, quaisquer que eles sejam, nem sequer de conveniência e de urgência. Uma gravidez pode ser inesperada, ou inconveniente, mas nunca - nesta acepção - poderá ser indesejada; ou, se o for, terá de ser suportada - por todos, mas principalmente pela mãe, condição para a qual ainda se não arranjou substituto à altura das exigências.

Uma gravidez pode ser, isso sim, absolutamente inviável; o que é uma história completamente diferente.




Sim
Se considerarmos, de forma radical, que uma nova vida se inicia no momento da fecundação, então seríamos forçados a aceitar como bom o facto de não ser possível a concepção sem a presença de ambos os componentes indispensáveis e fundamentais, o óvulo e o espermatozóide. Portanto, como não existiria o todo sem as partes, seria crime liquidar ou inviabilizar tanto aquele como aquelas; ou seja, todos os métodos anticoncepcionais teriam de ser erradicados e poderíamos mesmo chegar ao ponto de considerar a própria masturbação como algo de condenável, já que se trataria de desperdício puro e simples de um dos componentes essenciais.

Não chegando a esse ponto de fundamentalismo, e até porque se deve atender ao facto de não ser biologicamente sustentável a reprodução em massa, então passaríamos ao estágio seguinte, isto é, quando houve fecundação e se formou o zigoto. Será este o limite, temporal e técnico, para a interrupção de uma gravidez "não desejada"? Sabendo que seria inviável que aquele óvulo fecundado vingasse fora do útero materno, poderemos considerar que estamos perante uma vida humana em formação? Ou trata-se apenas de uma consequência natural de um processo biológico, transitório e de igual forma reversível, à semelhança do processo químico que leva à destruição do óvulo, através do contraceptivo oral?

Se a contracepção, por algum motivo, não foi eficaz, e se existe realmente uma fundamentação válida e irreversível para a interrupção, então será legítimo que uma mulher se socorra dos métodos subsequentes para que a gravidez não prossiga; desde que o faça assim que a gravidez for detectada, e logo que estejam disponíveis os meios técnicos para a interromper, estaremos em todo o caso perante uma extensão drástica dos métodos que, tendo falhado, e independentemente da ou mesmo contra a vontade da mulher acabaram por ser responsáveis por essa gravidez indesejada; quando falharam os métodos tradicionais, os processos químicos ou os dispositivos fisiológicos, e quando é de todo inviável, por motivos fisiológicos ou outros, rigorosamente determinados, que aquela criança complete a gestação e nasça, então será melhor que exista um último recurso - um último processo contraceptivo, mas já numa fase embrionária de gravidez.

Os próprios interesses sociais, em geral, estão envolvidos no acto mais individual das sociedades humanas. São inúmeros e seria fastidioso exemplificar os mais característicos, desde a gravidez em resultado de violação à detecção de malformações gravíssimas no feto; o simples bom-senso se deverá encarregar de destrinçar aquilo que é daquilo que não é aborto legítimo, quando não necessário e mesmo indispensável - nomeadamente quando ambas as vidas, de mãe e filho, estão em risco e é possível salvar uma delas; deixar morrer a mãe, quando a criança estava condenada à partida, apenas por questões "de princípio", de moralidade institucionalizada e empedernida, seria tão criminoso como fazer aquilo que a mesma moral condena. Trata-se, por vezes, de optar pelo menor dos males, de sobrepor o valor da vida como expoente máximo da existência e não a morte como seu denominador comum.

Determinar aquilo que é vida, quando é vida ou a partir de que momento existe vida, não podendo depender da decisão individual, terá de resultar por força de um contrato social tácito... como todos aqueles que regulam a vida em comunidade. Dependerá do bom senso das instituições que regulam as relações humanas e, por inerência, das pessoas que produzem a legislação. Nessa medida, será curial equiparar a utilização de um simples espermicida à injecção de substâncias tóxicas para o óvulo fecundado, provocando assim o aborto; do mesmo passo, e se essa técnica não resultar, por exemplo, a remoção cirúrgica do feto morto poderá salvar a vida da mãe e, nesse caso, inserir-se-á no mesmo quadro de legitimidade. Em situações limite, e dentro dos prazos determinados e das condições enumeradas, o acto médico poderá chegar à realização do aborto sem quaisquer consequências legais para os adultos responsáveis envolvidos.

A gravidez não é uma doença que se possa tratar nem deve ser encarada como uma fatalidade que se possa remediar. Poderá ser uma bênção e, nesse caso, motivo de regozijo, mas poderá resultar também de circunstâncias fortuitas, algo que não deveria ter acontecido e, então, estaremos perante algo a cumprir, uma obrigação; ou pode suceder ainda que se transforme em verdadeira maldição, em algo de extremo, de impossível, cuja única hipótese de resolução é a eliminação física de um dos seres envolvidos, ou para salvar a vida do outro ou porque a do primeiro seria de todo inviável.

Mulher alguma deverá ser obrigada a levar uma gravidez até ao fim se, comprovadamente, isso porá em sério risco a sua própria vida; nenhum ser humano poderá ser obrigado a nascer se, comprovadamente, a sua vida constituir uma tortura insuportável, para os que o rodeiam ou para si próprio. Admitir como fatalidade irreversível a simples fecundação de um óvulo por um espermatozóide, imputando a responsabilidade por tudo aquilo que possa ter corrido mal a alguma entidade abstracta e, por omissão de assistência, condenar à morte ou o filho ou a mãe, ou ambos, é um crime comum, previsto e punido por lei: homicídio por recusa ou omissão de auxílio.


NIM
A gravidez comprovadamente inviável, aquela que resultou de violação e a que pode pôr em risco a vida da parturiente, em todos esses casos a legislação actual (vigente) permite a remoção cirúrgica do feto, de forma medicamente assistida e nas instituições do Estado; essa mesma legislação permite ainda a chamada "interrupção voluntária da gravidez" a pedido da mulher, o que, sendo imensamente discutível, constitui uma enorme clareira, um vazio legal onde poderá caber qualquer espécie de abuso. Abuso de substância e, principalmente, abuso do espírito da lei.

O aborto, clandestino ou caseiro, sempre existiu e presume-se que não acabará nunca. Desde sempre as mulheres introduziram objectos estranhos na vagina e ingeriram substâncias várias para provocar a expulsão do embrião; quando também isso não resulta, muitas recorrem aos serviços de "curiosas", sejam elas parteiras ou não, reformadas ou não, com alguma espécie de formação ou sem formação alguma. Também há quem se socorra dos serviços de pessoal especializado para, por exemplo, abater a tiro ou simplesmente dar uma sova em alguém, e não é pelo facto de isso suceder que deverá ser considerado como inevitável... e muito menos como aceitável, ou justo, ou legal; a teoria do facto consumado, tão esgrimida pelos "aborcionistas", não pode, de um ponto de vista moral, merecer a mínima credibilidade. Assim como é comummente aceite que tanto os executores mandados como aqueles que encomendaram o "serviço" sejam punidos, também as abortadeiras devem ser condenadas, conjuntamente com a ou as pessoas que pagaram: a própria mãe, ou o pai biológico da criança que não chegou a ser, ou ainda qualquer pessoa que possa ter forçado a situação ou contribuído para que ela sucedesse.

A legislação vigente prevê a maior parte dos casos, se não todos, em que o aborto é não apenas legal como moralmente considerado legítimo; a questão reside nas motivações inerentes e em certos limitadores temporais; o enquadramento legal está perfeitamente definido e não consta que enferme de grandes lacunas. Os argumentos "aborcionistas" da soberania individual sobre a vida alheia ("na minha barriga mando eu" e enormidades semelhantes) tentam empurrar as limitações legais, temporais e de excepção, para o vazio absoluto, isto é, postulando a abolição de qualquer entrave legal ao aborto: pretendiam inicialmente o aborto "livre" até às oito semanas, apenas a pedido da mulher, depois passaram para as dezasseis, depois para as vinte, e finalmente para as 24 - seis meses de gestação. No limite, e numa progressão geométrica, atingir-se-ia então o paradigma da "liberdade" abortiva se fosse possível abortar até à véspera do dia previsto para o parto, ao fim de nove meses incompletos, 269 dias. Segundo essa lógica, já agora, porque não tornar legal o assassínio de um recém-nascido durante, digamos, o seu primeiro ano de vida? As fundamentações seriam as mesmas, a "inviabilidade" ou a "inconveniência" daquele ser, e, portanto, também se poderia talvez pensar em estender ainda mais o prazo de validade do assassinato legal, quem sabe se para todo o período da infância, quem sabe se até ao fim da adolescência ou mesmo, de forma absolutamente radical, até ao fim da vida ou sempre que a alguém desse ganas de esganar outrem.

Tendo havido consciência, resultando uma gravidez de um acto voluntário, quaisquer circunstâncias fortuitas ou transitórias que a possam dificultar deverão ser consideradas como não impeditivas para que essa gravidez seja levada a termo. Porém, em certos casos, devidamente fundamentados, caberá ao Estado - ou seja, à comunidade - suportar os encargos de um nascimento não "desejado", viabilizando, por um lado, a vida do nascituro, e inviabilizando, por outro lado, o pretexto da incomportabilidade que os progenitores poderiam alegar.

O âmago da questão é puramente moral, não meramente técnico. E a moral, ao contrário da técnica, releva e resulta de princípios. Uma coisa é evitar uma gravidez, outra completamente diferente é acabar com ela. A fronteira estará, porque se trata de moral e esta é o fundamento do equilíbrio, na área da presunção de inocência, o mesmo é dizer, das motivações atinentes: uma coisa é não poder, de facto, outra é não querer, pura e simplesmente. Utilizar o aborto como método contraceptivo é uma evidente manifestação do mais puro egoísmo, de abominável egocentrismo, e patenteia o mais horripilante e altaneiro desprezo pela vida, ou seja, em última análise por si próprio. Utilizar como bandeira ou como "ideal" a legalização da carnificina, a chacina sistemática dos inocentes, é a negação absoluta dos mais elementares conceitos que definem a humanidade: consciência, razão, inteligência. Abolir por decreto a compaixão, a bondade, o altruísmo, em nome de uma hipotética "liberdade" para matar, seria o reconhecimento final e definitivo de que falhámos em toda a linha, de que afinal estava tudo errado, é melhor começar de novo e, para isso, para começar de novo, há que exterminar a nossa própria espécie.

Ser "aborcionista", militante em movimentos "pró-aborto", não é como ser, por exemplo, contorcionista, ou benfiquista militante; será talvez igualmente estúpido mas não é de forma alguma tão inocente. Raia o absurdo que alguém exprima as suas "convicções" a favor de algo que é a expressão máxima da desgraça, da infelicidade, da miséria a que não escapa a nossa mortal condição. Ser adepto do "não", pelo contrário, apenas porque sim, ou seja, porque não, é um contra-senso óbvio e enferma da mesma irracionalidade, possuindo o mesmo valor intrínseco de, por exemplo, o facto de se não gostar de beringelas. A uns já não interessa para nada a questão inicial, que era a condenação formal de quem abortasse; agora interessam-se exclusivamente pelo aspecto lúdico da coisa, por assim dizer, e estão já promovendo o aborto como um bem em si, algo estimulante que se deve "praticar" com regularidade; a outros já não lembra os abortos que fizeram, ou que mandaram fazer, sempre por excepcionais e justificadíssimos motivos, como se sabe, e estão presentemente mais interessados em terraplanar quaisquer sentimentos de culpa e em ganhar na secretaria o que não é possível conquistar no campo.

O que está em causa não é ver quem "ganha" uma partida, se os vermelhos de sangue que são a favor, se os cinzentos do não radical; isto não é um desafio, até porque, seja qual for o resultado da contagem final, ambas as "equipas" terminarão empatadas: o que vai a referendo é a consciência de cada qual, o seu discernimento, o seu sentido de justiça. É por isso que voto NIM, convictamente e em força. Fique a lei como está. Ou retire-se os pedidos da ementa.

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13/12/06

Nostalgália









Calças à boca-de-sino a estalar de tão apertadas.
Camisa justíssima, colarinhos bicudos até ao absurdo.
Sapatinhos de bico aflito e tacões de dez centímetros.
Trunfa pelos ombros, triunfante, esvoaçante.
Bigodinho malandreco, óculos Ray-Ban,
O andar ritmado da juventude.
Que felizes éramos nós debaixo do sol.

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12/12/06

O velho David

"Há-de haver um Natal, e será o primeiro". Não me lembro bem do resto mas era isto, ou era mais ou menos. O velho David, com a sua varinha mágica para palavras: "Em que se veja à mesa o meu lugar]
[vazio."
Lá estarás nessa noite, com a tua família e o frio lá fora. Há-de haver um Natal para ti, mais um. Litania ou ladainha? Não me lembro, pronto. O velho David, como quem diz "que se veja à mesa o meu lugar]
[vazio",
tua definição de longe e de distância, cada vez mais indefinida. Tu, e a tua família, e o calor da noite de Natal brilhando na lareira, e as luzes do presépio aquecendo essa árvore de plástico, "o meu lugar]
[vazio",
artificial, e uma estrela dourada lá em cima. Paz na terra, paz na terra, paz na terra, o comboio da felicidade irrompendo pela escuridão, a tua família na primeira carruagem e o teu sorriso abrindo um "lugar]
[vazio",
por entre a neve do esquecimento. Quando soarem as doze badaladas, o velho David explodirá na tua cabeça docemente, com aquela voz abençoada, que Deus lhe deu, mostrando-te à mesa o teu "lugar]
[vazio".
A tua ausência no meu lugar
[...]

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Um olho no burro...

Esta é mais uma daquelas coisas que, mesmo sendo verdade - ou principalmente porque são verídicas - ninguém se atreve a sequer falar delas, não vá o diabo tecê-las e um bacano acabar apelidado de "racista", ou "fasssista" ou pior ainda, "xenófobo" e assim. Além do mais, como esta, em concreto, mete a raça cigana, além de "apelidado" e de levar com uns "epítetos", gajo que se atreva de facto a mexer com tal espécie de privilegiados arrisca-se gravemente a ser também esfaqueado e a levar uns pontapés e uns murros; com a ciganada não é de facto prudente a gente meter-se, salvo em tendo licença de uso e porte de arma, bastantes anos de carreira (de tiro) e uma não desprezível pontaria. Mas enfim, mesmo não sendo o caso, que seja pelas alminhas desprevenidas.

O esquema já se vai tornando corriqueiro e ninguém se poderá queixar já de que não sabia. Extremamente simples e eficaz, como é característica peculiar da raça gitana, consiste em ganhar uns milhares de contos num prazo de 24 horas ou, no máximo, alguns dias, apenas aproveitando a legislação que regula a aquisição de bens imóveis. Repetem-se sistematicamente os relatos, sendo o "modus operandi" sempre igual, pelo que se presume tratar-se de uma actividade não apenas lícita como extremamente lucrativa.

A história pode ocorrer em qualquer nova urbanização, preferencialmente quando ainda em fase conclusão mas com algumas fracções (apartamentos ou vivendas) já vendidas. De repente, surge uma potencial compradora que se dispõe a sinalizar a sua nova moradia a contado, ou seja, com dinheiro vivo, à mostra; mais ainda, não apenas sinaliza como dobra ou mesmo triplica a quantia do "sinal", dispõe-se a adiantar 10, 15 ou mesmo 20% do valor do imóvel, em dinheiro; nada de cheques nem de trapalhadas, é só assim, dinheiro à vista. Claro que, para o vendedor, isto é um perfeito milagre, é a verdadeira sorte grande que finalmente lhe bate à porta, de maneira que o melhor é tratar imediatamente - antes que a senhora se arrependa - de aviar depressinha toda a papelada, fechar o negócio, despachar o assunto; ainda para mais, atendendo a que se trata de alguém com excelente aspecto, uma verdadeira senhora, com um bronze de fazer inveja e que, ainda por cima, se desloca numa viatura topo-de-gama, uma "bomba" reluzente, um Mercedes imponente, ora bem, está-se mesmo a ver, é gente de posses, portanto é gente de bem. Qual é a dúvida? Negócio fechado, minha senhora, a casa é sua, desejamos-lhe as maiores felicidades e aqui estão as chavinhas.

Isto é logo pela manhã, assim pela fresca. Por volta do meio-dia, chega à nova urbanização uma estranha caravana: dois ou três automóveis, incluindo o Mercedes, e mais uma carrinha de caixa fechada e ainda um camião de caixa aberta; estranhamente, este não trás assim tanta mobília quanto isso, umas cadeiras, uma mesa, uns quantos alguidares e outros adereços de cozinha; mas vem carregado de gente, o camião, uns quinze ou vinte seres-humanos, velhos, adultos e crianças, heterogéneos no vestir mas com uma tez muito comum: são ciganos, pelos vistos uma família inteira, mais de trinta, no total, porque os automóveis e a carrinha também vieram lotados. Estacionadas as carripanas por ali, mais ou menos onde calha, toda a gente sai e vai transportando as tralhas para a casa nova. Sabe-se lá como, surgem umas quantas galinhas, que ficam de imediato à solta, e mais dois ou três cães, rafeiros até à quinquagésima geração. Um cigano mais robusto alomba com uma metade de porco; dois miúdos arrastam uma enorme saca de batatas; surgem panelões de alumínio, cestas, sacos cheios de tudo e mais alguma coisa.

Rapidamente, não apenas a casa está cheia de gente e de tralha como o estendal alastra até à rua, montam-se umas bancas feitas com tijolos e tábuas, aparece um contentor metálico e rapidamente está o churrasco pronto a funcionar. Para animar o ambiente, colocam-se umas quantas colunas de som no tejadilho da carrinha e vá de forçar a potência dos decibéis até ao limite, sevilhanas e castanholada com fartura, "aaaaaiiiii mi madre que te quieroooooo muchoooooo". Até às tantas, como manda a tradição cigana, ou, muito provavelmente, ao longo de vários dias (e as noites de permeio), como igualmente manda a dita e tão admirada tradição.

Pronto, é isto. Claro que, enquanto os novos proprietários da "habitación" ali estiverem, festejando interminavelmente sabe-se lá bem o quê, ninguém mais irá comprar ali "habitación" alguma. Aliás, os potenciais compradores passam, de então em diante, a nem sequer parar: aproximam-se, abrandam, e assim que se apercebem do barulho e da confusão que para ali vai, e também porque verificam facilmente tratar-se de um arraial cigano, aceleram, pisgam-se dali para fora a toda a pressa.

Ao fim de umas horas, o vendedor da urbanização, que nesse mesmo dia tinha julgado ter sido premiado com a lotaria, já está absolutamente pelos cabelos com tudo aquilo. E mais enfiado fica assim que surge a primeira queixa de um qualquer dos condóminos que tiveram a infeliz ideia de adquirir ali o seu novo lar. Então e agora, o que fazer? Bem, liga-se ao patrão, ou ao empreiteiro, eles que resolvam. Como poderia ele, simples vendedor de casas, adivinhar que afinal o bronzeado da senhora era o seu tom de pele natural? Onde já se viu ciganos a comprar casas em urbanizações de primeira categoria?

Bom, lá chega o patrão, o dono da obra. E chega o empreiteiro. Já agora, chega também um carro da polícia; alguém se queixou entretanto do barulho, a autoridade irá tomar conta da ocorrência, que se arrisca, segundo manda a tal tradição intocável, a prolongar-se indefinidamente. Os condóminos escolhem à pressa entre si um representante, a ver o que se arranja na defesa dos seus interesses.

Iniciam-se de imediato as conversações entre as partes. As quais são, de resto, muito simples: já se sabe que o vendedor sabe que se lhe acabaram as vendas e, portanto, as comissões; ou seja, está automaticamente no desemprego; o dono da urbanização sabe que nunca mais venderá nada enquanto aquela gente ali estiver; entretanto, há custos em curso que é necessário pagar; portanto, sabe perfeitamente que está arruinado; o delegado do condomínio sabe perfeitamente que as casas já compradas acabaram de sofrer, a partir desse mesmo dia, uma desvalorização de 50 ou mesmo 75%; se ele ou algum dos outros quiser vender a sua casa a qualquer idiota que porventura aprecie ciganada, vai ter um prejuízo fabuloso; logo, está ciente de que estão todos absolutamente, completamente, desgraçadamente e portuguesmente fodidos; quanto aos agentes da autoridade, que detestam meter-se em sarilhos, bem, esses sabem perfeitamente que têm de se pôr a milhas o mais depressa possível, e nada mais.

Quanto aos ciganos, não tem nada que enganar: eles sabem de fonte segura, já que são os genuínos inventores de semelhante maquinação, que têm a faca e o queijo na mão, como se costuma dizer. A realidade é esta, e é legal até ao tutano: para saírem dali, têm direito a receber o "sinal" que entregaram, mas... em dobro. Exacto. Em dobro. Se entraram, por hipótese, com 10.000 Euros (dois mil contos), têm a receber 4.000 contos; já que o vendedor ficou muito satisfeito por receber não dois, não cinco, mas dez mil contos de "sinal", ora, portanto, chovam vinte mil para cá, se fáxabôri, sinhôri; em dinheiro, que a gente não gosta de cheques; mas também podemos receber o nosso dinheirinho em notas, o que demos àquele senhor ali, e o resto pode ser num chequezinho, não há problema, nós confiemos, isso e mais dez por cento de juros é suficiente para cobrir a chatice; acha muito? Então vá lá, que eu hoje estou bem disposto: os nossos dez mil em notas, mais dez mil em cheque, mais cinco por cento em trocos (quinhentos contitos, o que é isso pra vosmicê).

Como se vê, os ciganos até são uns tipos porreiros, venha o primeiro dizer que não. Até confiam e tudo. E, no fundo, no fundo, como se vê também, é nestas ocasiões que a gente vê quem é amigo, quem salva as situações e quem arranja as coisas de forma a todo mundo ficar satisfeito: o construtor fica-se a suspirar de profundo alívio, se bem que tenha sido também aliviado de dez mil contos dos antigos; o vendedor suspira também, jurando a si mesmo nunca mais se meter em semelhantes alhadas; o condómino sorri, contente por si e pelos seus representados, de novo e afinal proprietários, tudo como dantes, ainda bem; quanto à bófia, suspira também e por fim, não apenas por de novo ter cumprido o seu dever como de ânsias pela merecida cervejinha, que já vai tardando.

Tudo acaba assim a contento, é o verdadeiro final feliz, a ciganada recolhe os tarecos nas viaturas, fazem-se à estrada com as suas mantas e os seus hábitos, lá irão calcorrear esse mundo à descoberta, sempre em frente é que é o caminho, há mais urbanizações e condomínios para bater. Para trás, deixam apenas alguns ossos de costeleta, uns sacos de plástico, e um dos rafeiros que ficou esquecido.

Ao longe, o sol deita-se merecidamente no horizonte, ele também exausto, farto de trapalhadas e de ilusões.

A urbanização prepara-se finalmente para recolher, de novo em sossego. Pronto, acabou-se. Toda a gente se deita e não se fala mais disso.

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