Odi profanum vulgus et arceo

23/06/06

Psst!

Alô? Olhe, fazia o favor. Não se importa de dar sinal de vida, hem, para a gente sossegar?
Fazia o obséquio, sim?
A gente sente a sua falta, companheira. Gostamos de si. É uma maluquice, uma coisa assim colectiva, e tal, mas é do coração.
Uma palavrinha, vá lá.
Beijinhos.

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No cais

E o sono, o sono, o sono,
A tua imagem desfocada neste espelho barato.
E bocejo, e bocejo, e bocejo;
Sem querer desato a rir, sem parar, disparato:
Olha um dia, olha outro, e outro.
Acredita, que eu já não posso (não é chato?).
É o sono, é o sono, é o sono,
É que já nem me lembro bem da tua imagem!
Um esboço, um esboço, um esboço.
Fatalidade engolida em seco, desvantagem.
Soma tudo, soma, e qual é o resultado?
Uma pouca de nada, seu avião sem fuselagem.
Rabisco, ensaio, projecto, salpico,
Trajecto acabado, saiam todos, fim da viagem.

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19/06/06

Prova de traição


Esperei por ti e nunca chegaste realmente
Nem quando o sol se pôs nem quando nasceu.
Cedo, muito cedo, pela manhã, o teu lugar vazio
Mostrava-se amarrotado, mas cheio de ausência.

Ainda fui ver se te via, algures, se não seria confusão.
Mas não. Frio, muito frio, este jogo de esconde-esconde.
Não estavas e parece-me agora que nunca estiveste
E o gelo matinal deixou-me na boca este horrível travo,
Este vazio, esta raiva, este sabor metálico a traição.

Não ficou nada, realmente? É mesmo só isto?
Chegou, por fim, não o fim dos tempos, mas o fim,
Só isso, e ainda assim? Não resta nada, definitivamente?

Ao longe, vejo bem desta janela arrepiante,
Um barco despede-se de Lisboa, e de mim,
Imponente e ferrugento, nem rápido nem lento,
Sem grandes pressas de ir embora, quase pachorrento.
Serás tu ali, naquela vigia, acenando, dizendo adeus?
Será teu aquele lenço branco, aquela mão aberta?
Que horror, meu amor que já não és, como sulca
Essa quilha alaranjada e indiferente, como tritura
A espuma das águas o teu peito de madeira
E como é belo afinal o rasto que deixas para trás,
Imperial, triunfante, ondulante, sempre em frente.
Tu no teu casco de metal e eu aqui, repetindo sempre
Não, não, não, não pode ser, não, não, por favor, não.
Necessito água, rápido, lavar a boca, já, agora,
Lavar depressa de mim este sabor metálico da traição.


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14/06/06

Almanaque de Asneiras


_ Um centramento no..., centramento na..., centramento em...

Palavras proferidas por Sua Excelência a Senhora Ministro(*) da Educação de Portugal, no Telejornal da RTP 1, hoje, às 14:05 h. Em triplicado, como transcrito.

centramento
Dicionário Houaiss: não consta
Enciclopédia 1: não consta
Enciclopédia 2: não consta
Dicionário P.E.: não consta
Dicionário T.E.: não consta
Prontuário ortográfico: não consta
Google (pt): 412 referências


"Centramento" não consta, em nenhum dicionário ou enciclopédia, como palavra "derivada" ou composta por sufixação, nem do substantivo "centro", nem do adjectivo "central", nem do verbo "centrar".

Provavelmente, a Senhora Ministro(*) referia-se a um site de meditação transcendental brasileiro, o Centramento.

Confere. Publique-se.



(*) A expressão idiomática "Senhora Ministra" foi pela primeira vez atestada pelo político Salgado Zenha (1923-1993). Primordialmente, o substantivo significava, entre outras coisas, "mulher medianeira, empenho, cunha". Por outro lado, a palavra "Ministro" nunca fez mal a ninguém, ao contrário de muitos assim designados. Digo eu, que não utilizo nem dicionárias nem enciclopédios.

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10/06/06

Os sete pecados mortais

Gula Avareza Ira Orgulho Inveja Preguiça Luxúria

Gula Ira Orgulho
Este miúdo tem nove ou dez anos e uma colecção de cromos para acabar. Merece portanto toda a confiança, e além do mais não passa de um garoto.

_ Levas estes meus quarenta e quatro repetidos, escolhes os que quiseres e depois entregas-me quarenta e quatro cromos, com repetidos dos teus.

Uns dias depois, recebo o mesmo envelope, com 38 cromos, alguns deles repetidos duas, três, quatro vezes.

_ Merecias era um estalo na cara, seu puto reguila - penso eu, de mim para mim, porque se é proibido dizê-lo, muito mais é fazê-lo.

Os pais da criança, com olhares de desafio, gabam em volta a esperteza de seu rebento.

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08/06/06

Consultório sentimental - XIV

A auto-sedução

Tive um namorado que ia ajudar na loja do seu melhor amigo nas férias. Quando vendia alguma coisa, metia algum no bolso e o resto é que ia para a caixa. Na altura do Natal, fazia tanto dinheiro que dava para as prendas e ainda depositar a prazo o resto. Eu DETESTAVA que ele fizesse isso, mas nunca o denunciei.
inconfessáveis


Deitemo-nos a adivinhar. Salvo seja. Esse seu ex-namorado, cara amiga, passeava-se numa bruta máquina, certo? Era menino para descapotável ou, no mínimo, para circular montado em sua espampanante mota de alta cilindrada, pois não era assim?

Era, pois era. Não é difícil adivinhar. Como todos sabemos, este país está cheio de ladrões altamente automobilizados, patifes do género desse seu "amigo", sem tirar nem pôr, gajos que roubam descaradamente, não apenas ao melhor amigo como até à própria mãe, se for preciso, tendo como finalidade primeira tal gatunagem, precisamente, a obtenção de uma ou várias prestigiantes montadas - aquelas coisas com rodas e motor das quais se diz ser cada qual consoante a que possui.

Surgem estas questões prévias como tentativa para localizar a questão, que se poderá por conseguinte resumir da seguinte forma: aquele bandido foi seu namorado e, portanto, a menina foi namorada do meliante, não certamente pelos seus dele dotes de inteligência, ou sensibilidade para a vida artística, por assim dizer; a menina ficou enrabichada pelo catraio não por via do carácter, mas antes, muito simplesmente, pelos bens que o homenzinho arvorava, a começar pela armadura (a farpela, a vestimenta, os trapos) e terminando, ou especialmente, pelo coche, pelos cavalos que o puxavam e respectivos arreios. É. Com efeito, nos tempos que vão correndo, aquilo que de mais sedutor existe num homem, aos olhos de uma mulher, é sem dúvida o seu meio de transporte; seu, dele, repita-se. Nada mais excitante, em sentidos figurado e literal, do que andar de cu tremido, como se costuma dizer e como é sabido.

Como implicação imediata da lei social estabelecida e comummente aceite, " tu és aquilo que conduzes", temos que a força gravitacional da atracção (e, por inerência o poder de sedução) varia na razão directa não da potência do macho mas da potência da máquina que o macho possui. Não é fácil encontrar uma mulher que resista ou fique indiferente a uma "bomba" reluzente, de duas ou de quatro rodas; existe na viatura, como se embutida nos cromados ou algures no porta-luvas, uma quantidade gigantesca de substâncias químicas propiciadoras daquilo a que se chama atracção, da mais trivial tesão, da mais arrebatadora das paixões. Segundo o mesmo princípio químico, a situação inversa também se verifica pela negativa, ou seja, nada pode causar mais repulsa, ou "antipatia", em linguagem feminina, do que o mau estado de conservação de uns estofos, uma pintura toda estalada ou, de forma mais abrangente, o "mau aspecto" de qualquer caranguejola. A sobrevivência, o prolongamento, a manutenção e mesmo o incremento da paixão dependem mais do estado geral da viatura, da sua idade e do seu preço, do que de qualquer estado de espírito ou qualidade própria do respectivo condutor.

Presume-se, assume-se, toda a gente, que o proprietário de qualquer viatura acima dos 10.000 contos, ou digamos, 5.000, não pode ser má pessoa, desonesta, sacana, muito menos estúpida e ainda menos ignorante. Caramelo ao volante de qualquer Ferrari não será por suposto nunca menos do que um perfeito génio, refinado espertalhão, cavalheiro de respeito. É logo de doutor para cima, imediatamente e de chapéuzinho na mão, quando não vossa excelência para cá, vossa excelência para lá, e queira fazer a fineza, oh, por quem sois, senhor engenheiro, mande sempre. Logo, portantosmente, nenhuma lata de valor inferior pode transportar alguém de valia não correspondente, forreta, pé-rapado, indigente, ou seja, refinadíssimo cretino, bandidote, filho-da-puta encartado, chega pra lá essa merda, ó paneleiro, vai levar no cu, ganda pindérico, manda-me essa merda prá sucata.

Em outro registo mas na mesma bitola, realcemos que pouquíssimas coisas existirão mais descorçoantes, geradoras de antipatia e, por via disso, anti-clímax, ou empata-fodas, do que o calhambeque a cair de podre. Não existe um único gajo que desconheça o verdadeiro momento, o único factor realmente importante quando chega a hora de a gaja avaliar a pinta do animal: é quando lhe aparece pela primeira vez à frente com o seu bólide; ao primeiro relance, a chavala, consoante a carripana lhe agrade ou não, toma uma irrevogável e definitiva posição, a qual será uma de duas, ou algo como "ah, que lindo" e fica logo ali apaixonada, ou uma coisa do género "mas que merda vem a ser esta" e isso é sinal de que não fica apaixonada, danou-se, a coisa morre ali mesmo, "ah, afinal não gosto nada dele".

Cabe ao candidato, se calhar a negativa, não ficar ofendido. A lapidar, típica, feminina expressão "ah, afinal não gosto dele" refere-se ao carro, não ao dono, por mais que seja gramatical e prosodicamente indestrinçável tal coisa, a partir de tão parcas palavras, que nem são, de resto, geralmente produzidas, ficando-se apenas pelos mais recônditos interstícios mentais da ex-candidata a objecto de amores; correu mal, pronto, o carro até seria mesmo uma valente cagada, há que reconhecê-lo e seguir em frente, mulher alguma consegue re-apaixonar-se, a não ser que se consiga uma viatura decente num prazo curtíssimo, se não pode, fodeu, há que ter "fair-play" nestas coisas.

Cumprido este périplo através de algumas das circunvoluções cerebrais que entroncam o e no chamado "eu-fêmea", ou "anima femina", podemos então regressar ao início da conversa, agora já detentores da explicação, das motivações que levaram a nossa correspondente a enamorar-se (ser namorada) do primordialmente referido gatuno. Pois é. Tomou-se de amores nossa amiga por semelhante biltre, apenas por, ou tendo em consideração que, o cabrãozito andaria pela certa muitíssimo bem montado. Ora, como poderia ela adivinhar que o carro, aquela bisarma com 200 cavalos, era roubado ou tinha sido comprado com dinheiro proveniente de desfalques? Sejamos sérios. A rapariga estava inocente, de todo. Em não sendo bruxa, realmente, como poderia ela suspeitar de tal coisa?

Ficou embeiçada pelo roncar do motor, pela velocidade estonteante, coitada da rapariga, apaixonou-se violenta e consequentemente pelo rapaz, não a crucifiquemos agora por ter sido tão ingénua, estúpida, galinha entesoada. Bem bastarão certamente os remorsos que andará carpindo desde aí. Não podemos nem devemos atirar pedras, isso não é cristão, de mais a mais sabendo perfeitamente, isto é, presumindo, que tal coisa não voltará a acontecer e que a dita, a pobre infortunada, terá mais cuidado para a próxima, não cairá assim tão facilmente, não ficará logo com as hormonas e a passarinha aos saltos, deverá indagar previamente qual o modo de vida do candidato, a proveniência da viatura, quiçá solicitando os respectivos livrete e registo de propriedade, há que ser de extrema prudência nestes materialistas e conturbados tempos. Haja respeito e compostura, enfim, não há-de agora uma moçoila deixar-se ludibriar por qualquer valdevinos, vigarista, arrivista, lá porque surge montado numa irresistível ("amorosa") moto, num qualquer "Jeep" quatro por quatro, por mais "lindo" que seja, ou, por exemplo, num Mercedes série A de apenas dois lugares, oh, que romântico; coisas que, já se vê, bem podem ser não do próprio mas do alheio, o que, em alguns casos, acaba por foder tudo.

Haja decoro também por parte de nossa rapaziada. Isso de andar por aí a "sacar" gajas, à conta da motorização que se tem debaixo dos pés, está mal; é aproveitar a ingenuidade das moças, a sua natureza amorável, namoradeira, apaixonadeira, a sua fraqueza inata por cavalos-força, a sua delicadíssima constituição sexual, que por vezes as leva inadvertidamente ao orgasmo, apenas por dar uma voltinha a 200 à hora. Bem sabemos como pode ser, para o chamado sexo fraco, estonteante, a velocidade, emocionante, o perigo da estrada, excitante, uma razia a outro automóvel, fascinante, a tremenda potência do motor, alucinante, uma curva a derrapar, de cortar a respiração, um "cavalinho". Aos jovens se pede que se aquietem, até porque chega para todos; não há necessidade nenhuma de enganar as raparigas que se pretende comer com aquilo que não é nosso ou que foi obtido por meios menos legítimos; pode-se comer na mesma, assim às manadas, sem precisar de golpadas e de enrabanços apriorísticos do género.

E também, sejamos claros e concisos, tal honesto procedimento, não usar o furto para impressionar, e tal, acaba por marcar pontos a nosso favor; muito provavelmente, se aparecermos apeados ou com um carrito merdoso, num primeiro encontro com uma candidata a levar com ele, o mais certo é ficarmos imediatamente e daí em diante a chuchar no dedo, mas também pela certa essa candidata levará em linha de conta a nossa atitude honesta e ficará, doravante, nossa amiga; é muito melhor do que nada, a curto prazo, e a longo sempre nos podemos consolar com o facto de que também não teremos que levar com ela para o resto da vida.

Ora, jogos de sedução há muitos. Se não vai lá com o pópó, pode ser que funcione com pastelinhos, bombons ou pão-de-ló. Ou com conversa. Umas rimas e assim. Costuma pegar, à falta de melhor, mesmo nos casos mais desesperados, para quem não tem dinheiro nem para o táxi, para os desgraçados que se deslocam em sucatas como o R4, o R5 e o R16, que horror, não vale a pena exagerar, mas haja esperança. No paleio, por excepção, pode residir a salvação dos auto-excluídos. O problema é que as fábricas não param de produzir, caralhosasfodam.

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07/06/06

Os sete pecados mortais

Gula Avareza Ira Orgulho Inveja Preguiça Luxúria

Preguiça
Por alguma razão, balançou, rodou ligeiramente, um canto bateu na parede, ficou esmilhado, por fim despenhou, partiu a meio de encontro ao lavatório, e numa fracção de segundo o espelho desfez-se em estilhaços no chão de ladrilhos, centenas de espelhinhos minúsculos, e cacos, e poeira de vidro por todo o lado.

A senhora foi buscar a pá, a vassoura. Pela primeira vez em muitos anos varreu, mais ou menos, quase todos os destroços e algum do lixo acumulado. O tapete, que em tempos tinha sido branco, rebrilhava agora estranhamente, como se estivesse coberto de lantejoulas. Pegou nele e foi dependurá-lo no estendal, com duas molas de roupa.

O vento se encarregaria de o sacudir.

_ Graças a Deus, há o vento - disse.

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Direito Laboral Português (DLP)

Subsídios para um tratado consuetudinário do nacional-atavismo


O trabalho em Portugal rege-se e, numa perspectiva histórica, sempre se regeu por três princípios básicos: esperar pela hora de saída, esperar pelo fim do mês e esperar pela idade da reforma; existe ainda um princípio intermédio, espécie de fio do condutor e elemento de ligação coerente dos outros três: esperar pelo fim-de-semana. Funcionando como factor de encorajamento social colectivo, verdadeiro motor da inércia caracteristicamente lusitana, há ainda as revigorantes possibilidades de esperar pelo próximo dia feriado, pela próxima "ponte", pela próxima "baixa", ou, suprema benesse e saborosíssimo delíquio virtual, existe também aquilo que geralmente se designa por "esperar pelas férias".

O verbo "esperar" constitui, na verdade, o étimo que melhor define a identidade nacional; Português que se preze está permanentemente, perpetuamente, pacientemente, sempre "à espera" de uma coisa qualquer: à espera de receber uma carta de chamada, à espera de uma entrevista para um emprego maravilhoso, à espera da consulta com o "especialista", à espera de que seja despachada certa e urgentíssima papelada, à espera de uns resultados importantíssimos, à espera de que acabem as obras lá em casa, à espera do canalizador ou da mulher-a-dias, à espera do autocarro ou da boleia combinada, à espera de que seque a tinta nas paredes ou de que o frango acabe de assar. Esperar é, em Portugal, um verdadeiro estado de alma, é uma coisa em si, uma actividade; nenhum outro povo consegue esperar tão proactiva e freneticamente; são conhecidos, e clinicamente reconhecidos, casos de portugueses absolutamente viciados em tais empreendimentos, e aos milhões são eles, pessoas que adoram e que se ocupam exclusivamente a esperar ou "aguardando" a sua vez na bicha, qualquer bicha, não interessa, a bicha do banco, a bicha da gasolina, a bicha dos táxis, a bicha das Finanças, e assim por diante. Curiosamente, o Português militantemente atarefado com as suas bichas apenas se preocupa com a designação, bicha, bichas, e considera tal coisa um horror, não o facto em si, a bicha ou as bichas, mas o facto de se lhe chamar bicha ou bichas e não aquilo que deveria ser, não é bicha, é fila, e não é bichas, é filas, não façamos confusões.

Aliás, é desta obsessão pelo preciosismo linguístico e pelo vernáculo sociológico, pelo rigor terminológico, em suma, que brota o não menos importante apego pelo direito em geral e pelo direito laboral em particular. Laboriosamente conquistado, ao longo de séculos de História pátria, o inalienável direito a esperar, cumpriu-se mais uma vez Portugal, a três quartos do século passado, com a chamada revolução de Abril; reduzida finalmente a letra de forma e valendo por lei, o direito a esperar arrasta consigo, anexos, apensos, uma série de direitos conexos, genericamente conhecidos como "direitos adquiridos" e que têm por fulcro a defesa intransigente do direito ao lazer. Escorados não apenas pela vontade democrática, expressa pelo voto, da maioria dos preguiçosos, dos laxistas e dos parasitas, mas também pelo próprio código genético lusitano, do qual é já parte activa e significativa, estes "direitos adquiridos" representam a espinha dorsal do Direito português e o mais espantoso contributo identitário do Portugal democrático, no âmbito europeu e, porque não dizê-lo, universal. De facto, reconheçamo-lo sem qualquer rebuço, existe uma lógica absolutamente inatacável subjacente à estatuição dos direitos adquiridos: ao Português comum, o chamado popular, ou homem do povo, ocupado, sobrepujado, ajoujado, atarefadíssimo em seus actos de espera e, por conseguinte, sem mãos a medir nem tempo para fazer seja o que for, são legalmente facultados os direitos fundamentais à existência, a saber, emprego remunerado ou, em não sendo possível arranjar-lhe o emprego, ao menos garante-se-lhe a remuneração, devendo ser o dito emprego o mais possível "estável", isto é, vitalício, e, de preferência, sem grandes ou com nenhumas atribuições ou responsabilidades.

Torna-se assim, por fim, possível que se realize no quotidiano este real paradigma da felicidade: ter uma santa e descansadíssima vida profissional, uma carreira de trinta ou quarenta anos preenchida por tempos de espera, pela manhã de casa para o emprego, em transportes públicos ou em viatura própria, à tardinha do emprego para casa, idem aspas, com de seis a oito horas intermédias, à espera da hora de saída. Assim, dia após dia, esperando com ansiedade a 6ª Feira à tarde, mês após mês, aguardando a chegada do Verão, ano após ano, até à abençoada meta final, o bem supremo, a querida, merecidíssima reforma paga, o trabalhador português, o homem da rua, o povo, consegue algo de inacreditável, para qualquer estrangeiro roído de inveja, ou seja, passar toda a sua vida sem fazer, sem alguma vez ter feito, e todo contente consigo mesmo, absolutamente nada.

Digamos que, se nos fosse perguntado, por absurdo, qual é a coisa que mais nos distingue de todos os outros povos do mundo, a resposta seria ligeiramente diferente da usual, até há uns anos, a qual era "a saudade"; actualmente, aquilo que nos distingue já não é esse folclórico e romântico substantivo, mas antes a muito singela expressão "não fazer nenhum". Exactamente. Apenas em Portugal é possível fazer carreira, construir uma reputação, ter um modo de vida exclusivamente a partir de coisa nenhuma, sem produzir seja o que for. Esperamos uns pelos outros e todos por qualquer coisa, nisso consiste a mais pujante realização, o único verdadeiro sector de actividade nacional. Os mais aptos, em tal mister, rapidamente chegam a lugares de responsabilidade, onde ficam à espera da próxima, inevitável, segundo o princípio de Peter, irresistível promoção. Os ainda mais aptos chegarão aos topos sociais, à nata, irão a ministros, a secretários-de-estado, a adjuntos ou a secretários, na pior das hipóteses. Os excepcionalmente aptos, nestas artes da simpática inépcia, da voluntariosa inércia, os eleitos, enfim, com extrema facilidade chegam a chefes de repartição, a sub-delegados adjuntos, a coordenadores de serviços, a gestores de empresas, a porteiros de discoteca, a presidentes da república, a cabo-de-mar ou a agente da autoridade.

Todos os portugueses, do mais alto magistrado da nação ao mais modesto contabilista, demonstram igual fervor no cumprimento da sua missão no concerto das nações e das humanas espécies. Todos se dedicam, os portugueses, de alma e coração, a esperar que o tempo passe. Precisamente aquilo que o tempo faz sozinho, mas pronto. Não compliquemos.




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Fôdeu

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05/06/06

Dá-se? Não! Da-se!



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(foda-se; levem lá esta merda, fáxabôri; isto só tinha piada quando não valia um tusto; assim, não gosto; é foleiro; é uma coisa pauloqueridamente ridícula; please? Kit anti-comunista incluído, totalmente grátis. Se responder a esta magnífica oferta durante os próximos quinze dias, receberá ainda, sem qualquer encargo adicional, um magnífico dicionário ilustrado de caralhadas em Português, edição exclusiva, espantosamente encadernado a coiro e maravilhosamente gravado a oiro.)

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Olha!

Alguém como eu
Budismo
Se não te portas bem, na próxima reencarnação, és uma barata. (mote)

Glosas
Se a tua vida corre mal, é porque estás a pagar as patifarias que fizeste na tua vida anterior.

Se a tua vida corre bem, não te excites muito porque na próxima estás lixado.

Se cheiras mal dos pés, é porque andaste por maus caminhos desde que reencarnaste.

Se cheiras mal da boca, é porque não só mas também.

Se partiste uma perna, com fractura exposta, podes estar descansado porque isso daqui a trinta anos não é nada.

Se te achas muito infeliz, atenta na vida que levam as larvas da couve galega.

Se estás feliz, põe-te a pau com aquilo que aí vem.

Se tens saúde, isso não augura nada de bom e vais certamente desencarnar em breve.

Se não tens saúde, toma um chá de cidreira e espera que o problema passe.

Se és uma pessoa bafejada pela sorte, bem podes esperar pela pancada na próxima vida.

Se te julgas o gajo com mais galo à superfície da Terra, acredita que na próxima vida vais ter toda a sorte do mundo.

Se desejas mal a teu vizinho, podes crer que esse mal te vai cair em cima, se não for antes o vizinho.

Se teu vizinho te quer mal, se te mói o juízo, não te rales, paz e amor, caga nisso.

Se tens azar ao jogo e no amor, não te metas mais em jogos amorosos, porque um mal nunca vem só.

Se tens sorte à batota e com as mulheres, eu se fosse a ti largava o baralho e ia já a correr para casa.

Se algum mal te sucede, é porque ainda não pagaste o suficiente pelo mal que fizeste.

Se não fizeste mal nenhum a ninguém, vais pagar na mesma daqui a duas ou três vidas, porque hás-de fatalmente reencarnar em grandessíssimo filho-da-puta.

Se nunca fizeste bem algum a alguém, hás-de ser recompensado com uma reencarnação do piorio.

Se gostas da pesca à linha, na próxima reencarnação és uma minhoca.

Se votaste Cavaco Silva, na próxima reencarnação és o pato Donald.

Se votaste Cavaco Silva e não gostas da pesca à linha, na próxima reencarnação és a minhoca do pato Donald.

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03/06/06

Bem


Um dia morro ao vento. Morro com o meu corpo a cortar o vento. Com a música a rebentar-me em bolas de sabão nos ouvidos e a escorrer pelas paredes do corpo. Um dia morro com um último gosto doce na boca. Um dia vou com o vento.


Mas quem será esta fulana? De sonsa não tem nada, e desconhece-se-lhe inteiramente a cara. Tem aquilo, a julgar pela amostra, que é cada vez mais raro, na vida como na escrita: a sinceridade. Alguns chamam-lhe genuinidade. A mais difícil das formas de expressão.

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02/06/06

6 de Junho: Dia Nacional do Snoopy


VIRTVTIBVS MAIORVM VT SIT OMNIBVS DOCVMENTO.PPD-PSD(*)




(*) tradução do Latim: "Às Virtudes dos Maiores, para que sirva a todos de ensinamento. Dedicado a expensas públicas" - partido social democrata. Esta inscrição está no arco triunfal da Rua Augusta, em Lisboa, e foi esculpida na pedra muito antes de Sá Carneiro ou Magalhães Mota terem idade para fumar, nos tempos de Sua Alteza a Rainha D. Maria Cachucha.
fonte do Latim: zerozero.pt (sacanas, copiaram-me o endereço quase todo)
imagem do símbolo nacional: sarahackerman.blogspot.com (boneco provavelmente gamado de outro sítio qualquer)
imagem do outro símbolo nacional: Encarta

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Cavaco não é integralmente burgesso

Só um bocadinho. Na forma como mastiga, e tal.

Porque, de resto, a minha alma está parva, o actual inquilino de Belém acaba de demonstrar não apenas alguma inteligência como até um módico de faro para as cousas da política. Cousas, não causas, e por via disso mesmo andam aí agora nossas esquerdas aos pinotes, pior que estragados, comunistas e afins. O homem fodeu-lhes a lei da paridade bem fodida. Gaveta com ela. Devolva-se. Arquive-se.

Olha que bem. Aplausos, uma vez sem exemplo, para nosso Presidente. Como se diz nas televisões portuguesas, uma grande salva de palmas para ele.

Evidentemente, e não há nisto mistério algum, ao contrário do que indiciaria o incómodo que sentem os vermelhos, se bem que já desconfiasse, agora tenho a certeza: nosso Cavaco lê aqui o Godot, a "morar" no endereço http://001.blogspot.com. Bem me parecia. Há que tempos andava eu intrigado com um dos raríssimos visitantes aqui chegados sem ser através de pesquisas Google; o endereço de IP não engana, é da zona de Belém, mas, ainda assim, nunca fiando, nunca se sabe, poderia ser um maluco qualquer lá daquelas bandas; agora o próprio Presidente da República! Oh honra, oh maravilha, ó Glória, caralhostafodam!

Mas sim, é verdade. Confirma-se. Desde o dia 23 do mês passado, quando aqui publiquei um avisadíssimo texto sobre a Lei da Paridade, as visitas de Sua Excelência cá ao boteco tornaram-se diárias e, por exemplo ontem, Cavaco veio cá três vezes, três. Não me custa nada imaginar o gajo a queimar os neurónios com aquele modesto, porém certeiro e cirúrgico arrazoado, pedindo opiniões a seus doutos conselheiros, atão mas vocês não acham que este caramelo tem razão, que isto é mesmo uma lei muitíssimo mal parida, hem, que me dizem? Vocências vede aqui esta conversa do povinho, a maneira como o povo fala dessa lei, tá-se mêmo a ver, com certeza, é para vetar, fodei-vos.

E pimba. Lá foi Sua Excelência pespegar o vetozinho na puta da lei, essa é que é essa. Tudo à conta aqui do bacano, como se vê. Escusam os comunistóides de andar por aí, em blogs merdosíssimos, tipo arrastão soviético, a insultar o Presidente por causa do veto; além do mais, haja respeito, Cavaco é uma instituição da República, um símbolo nacional, caralho, é de bom tom não abandalhar as instituições. É escusado que andeis por aí a bater com a cabeça nas paredes, a ver se descobris o que terá originado o veto presidencial, a inventar maquiavélicas teorias da conspiração e tenebrosas manobras da reacção; não foi nada disso. Foi até muito simples, não procureis mais, a causa estava mesmo debaixo de vossas ranhosíssimas pencas.

O homem informa-se, antes de tomar suas altas decisões. Que é? Que foi? Veio aqui, sim, leu a minha opinião, tomou-a como aquilo que ela é na verdade, a verdadeira voz do povo, e pronto, não tem nada que enganar, vetou a lei mal parida. Foda-se. Cambada de invejosos. Será preciso fazer um desenho?

O que é que queriam? Que o PR tomasse as suas decisões completamente sozinho?

Senhor Presidente, Excelência. Não ligue a esses comunas. Veio Vossa Excelência a esta sua casa, a conselho, e veio muito bem. Veio perfeitamente. A verdade é esta, Excelência: foi aviado ou não foi aviado, Excelência? Ora, foi, claro que foi, portanto não há mais nada a dizer.

Às ordens do Senhor Presidente. Cumprimentos, Senhor Presidente. Mande sempre, Senhor Presidente.

A Bem da Nação.

Zero Zero Um

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