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O Portugal "orgulhosamente só" desapareceu naquela madrugada. Agora, este país está orgulhosamente acompanhado. Era então o mais atrasado da Europa; hoje, é aquele que apresenta os mais baixos índices económicos e sociais. Entre uma e outra coisas, a diferença é muito mais do que terminológica: estávamos e estamos na chamada "cauda da Europa", mas agora isso diz-se de forma diferente.
Aliás, o saldo é francamente, para não dizer exclusivamente, semântico. Os tempos mudaram, de facto. Agora já não se diz "deficiente", mas "pessoa portadora de deficiência"; o antigo "cego" é agora "pessoa portadora de deficiência visual", ou simplesmente "invisual", num registo mais ligeiro e abreviado; já não existem "pretos" mas "africanos" ou, num registo menos formal, "pessoas de cor" ou ainda "elementos de minoria étnica"; a "disciplina" acabou, e em seu lugar surgiram coisas como "diálogo" e "compromisso"; terá sido finalmente descoberta a cura para o cancro, que agora se designa por "doença prolongada"; a criminalidade praticamente desapareceu, já que não existem criminosos, ladrões ou bandidos, mas apenas, respectivamente "arguidos", "alegados furtos" e "franjas de marginalizados".
Mas nem tudo se perdeu, mesmo a este nível. Resta, intacta, a chamada Liberdade. Com "L" maiúsculo, e másculo, e não por acaso. Vemo-la por aí, por todo o lado.
Qualquer cidadão nacional tem hoje toda a liberdade, e uma esplêndida oferta de serviços, para colocar grades de ferro nas janelas, para comprar circuitos fechados de vídeo (e alarmes, e "sprays" paralisantes, e tacos de basebol) ou arrendar os serviços de seguranças privados e mesmo de agentes da autoridade. Somos livres, somos livres de nos trancarmos nas nossa próprias casas, livres de nos barricarmos contra o mundo lá fora, livres de aprisionar a realidade fora de portas.
Qualquer português é livre de escolher, sem qualquer espécie de restrição e sem que lhe sejam feitas quaisquer perguntas, o local onde irá passar a noite, hoje, amanhã ou nos próximos anos: sendo por exemplo lisboeta, pode optar pela Praça da Figueira, Martim Moniz, Restauradores, Largo de Santos, ou mesmo qualquer átrio de centro comercial ou uma das estações de "metro", ferroviárias, rodoviárias, etc.; pode ainda, é totalmente livre de o fazer, escolher o material com que se irá cobrir, para se proteger da fresca, seja cartão canelado, jornais, serapilheira ou outro material espalhado pela cidade, gratuito e acessível.
Qualquer dos nossos compatriotas pode, hoje, em plena liberdade, emigrar para o país de sua escolha. Nos casos em que tal não é possível, o Estado garante os meios de subsistência suficientes para sobreviver durante 18 meses. De resto, ao cidadão é concedida a liberdade de se despedir, de permanecer com o estatuto de "desempregado de longa duração" pelo número de anos que lhe apetecer e, ainda, de se inscrever no Centro de Emprego da sua área de residência, caso tenha.
À população trabalhadora em geral, tanto aos trabalhadores por conta de outrem como àqueles que passam recibo verde, é garantida a liberdade de se furtarem absolutamente a qualquer espécie de responsabilidade, de competência, de assiduidade ou de lealdade, presumindo-se igualmente o direito inquestionável à fuga aos impostos, na medida das possibilidades e em função dos conhecimentos pessoais de cada qual.
Aos nossos concidadãos seniores é concedida a liberdade de circular em espaços públicos entre as 9 e as 17 horas, de 2ª a 6ª, e entre as 8 e as 20 horas em Sábados, Domingos e Feriados. Têm também a liberdade de apresentar queixa, junto das entidades competentes, no caso de serem assaltados, espancados ou apenas insultados pela juventude "irreverente". A esta, por seu turno, é garantida a liberdade total, absoluta, suprema, para todo e qualquer efeito, já que, em se tratando de presumíveis e legalmente inimputáveis delinquentes, devem ser protegidos por todos os meios contra a má vontade dos
gerontes.
Aos frequentadores do sistema de Ensino, é também concedida a mais ampla das liberdades; podem, a seu bel-prazer, destruir património, depauperar o erário público, riscar automóveis, partir vidros e carteiras, agredir funcionários e professores, quando não os próprios pais; podem dar largas à sua criatividade, borrando qualquer parede que lhes dê na mona, ou à sua natural agressividade reprimida, assaltando os colegas mais betinhos, por exemplo.
Mesmo as classes mais "favorecidas", como empresários e outros malvados, mesmo esses possuem hoje uma protecção legal, têm agora direitos e liberdades com as quais nem sonhavam nos tempos "da outra senhora": têm toda a liberdade para abrir falência, fazendo reverter o valor patrimonial em favor dos seus familiares e os prejuízos e dívidas em favor dos seus ex-funcionários e do Estado; têm a liberdade de solicitar empréstimos a fundo perdido para modernizar a empresa e, com essa massa, comprar mais um Ferrari, ou levar a família num cruzeiro, ou pôr casa à Manuela, ou à Adélia, ou à Micas.
Às minorias étnicas, particularmente aos ciganos, é concedida a liberdade de conduzir sem carta-de-condução, de passar com distinção nos exames do Ensino Básico sem nunca terem frequentado as aulas e de poderem ocupar ilegalmente o terreno que lhes aprouver para instalar as suas barraquinhas tradicionais; a seu tempo, o Estado garantir-lhes-á também a liberdade de escolher a habitação, modelo e tipologia, com que serão presenteados por terem tido a bondade de deixar a barraca onde moravam (e que será cedida a outros, para eternizar o ciclo).
Enfim, seria fastidioso enumerar todas as amplas liberdades, ou arrolar toda a Liberdade, em todo o seu esplendor e nas suas diversas facetas, de que se goza hoje em dia neste país, abençoado naquela madrugada de 25 do 4. Dos três "D", então arrolados pelas sumidades madrugadoras, ao menos esta foi plenamente cumprida. A Descolonização foi a tragédia que se sabe, o Desenvolvimento não correu lá muito bem, porque éramos os últimos e os últimos somos agora, mas, ao menos, salvou-se a Democratização: no seu vértice fundamental, o da Liberdade que identifica e distingue, a "revolução" dos cravos triunfou em toda linha. Releiam-se os benefícios listados (mais os não listados por falta de vagar), e reflicta-se, se for o caso. É inegável. É isso e é a companhia.