O estetoscópio no pescoço
Extractos de uma
carta endereçada pelo Médico Alfredo Vieira a João Tilly:
(...)
A dor de garganta é uma urgência? A constipação é uma urgência? A diarreia aguda é uma urgência? A bebedeira é uma urgência? As borbulhas que apareceram no corpo são urgências? A febre que apareceu hoje é uma urgência? Estamos a falar de muito mais de 50% das situações que afluem aos serviços de Urgência. E têm que ser todos vistos, até se provar não se tratar, de facto, de uma urgência, a não ser que se decida acusar os médicos de não serem também adivinhos. O que era, em suma, o que o médico generalista (repito: um especialista que estudou 23 anos para chegar lá) deveria ter feito, se a pessoa tivesse a ele recorrido, e se ele existisse. Há um AVC em nº5 da lista de espera? Espera. Um enfarte agudo do miocárdio em nº9? Espera. Um abdómen agudo em 16º? Espera. Espera pelas borbulhas, febres, dores de garganta.... Se entretanto entrarem em paragem cárdio-respiratória, entram logo num rebuliço, mas geralmente já é tarde. E esses casos realmente urgentes também têm que ser tratados, não da forma ideal, mas da forma possível, ao mesmo tempo que o médico continua a ver as dores de garganta e as febres, dispensando mais ou menos atenção, conforme a sua maior ou menor perícia, a eles nos "intervalos". Com carência de estruturas físicas, de meios de diagnóstico e tratamento, de recursos humanos.(...)
(...)Nas urgências temos, de forma criminosamente legislada, médicos de serviço durante um mínimo de 24 horas seguidas por semana, 47 semanas por ano (já descontadas as férias)? Nesta situação está a esmagadora maioria. Esperam concentração para o vosso caso em particular, entre 50 mais ou menos graves que ele teve/terá que ver? Depois de 12 horas de serviço? Depois de 18? Esperam que ele não erre? Esperam simpatia? Depois de 3 toxicodependentes lhe terem feito choradinhos para lhes serem prescritos uns ansiolíticos nos intervalos das doses? Depois de uns quantos bêbados os terem ameaçado quando lhes foi transmitida a circunstância das suas situações não serem urgentes? Depois de um par de familiares desgastados pelos avós, que não estão em lares por falta de dinheiro, lhes terem tentado impingir um internamento em regime de hotelaria com base em queixas virtuais, chantageando com os óbvios maus tratos e falta de cuidados com que vitimizam os idosos inocentes? E tantas outras situações, tantas, que suas excelências, do alto das suas sabedorias e sentenças, nem conceber conseguem, visto nunca terem na vida estado tão perto do lado mais carente, mais decadente, menos educado, menos compreensivo e mais agressivo da sociedade que ignoram.(...)
Vai já longa, extremada e, pontualmente, um pouco deselegante (para utilizar um qualificativo inócuo), a polémica em torno do acto médico em geral e das urgências hospitalares em concreto. Sugere-se a leitura integral da referida carta e dos
comentários que os visitantes vão fazendo, sobre o assunto,
naquele blog.
Porque ali se citam alguns casos particulares, alguns deles terríveis, reflectindo más práticas ou graves deficiências no sistema, parece-me não ser arrogância minha se citar mais um, em jeito de achega. Não o faço na caixa de comentários do blog de João Tilly porque, pelos vistos, existe ali um limite rígido para o tamanho do texto e, sinceramente, nem sempre a capacidade de síntese é o meu forte.
Aqui há uns anos, era uma 4ª Feira, acordei de supetão, agarrado ao flanco, com a nítida e excruciante sensação de que me tinham espetado uma faca nas costas; vá-se lá saber porquê, após alguns minutos notei que não conseguia articular som algum, nem uma palavrinha nem um simples ai, porque simplesmente tinha parado de respirar; não sei quanto tempo aquilo durou, mas posso afiançar que não é nada agradável estar vivo e consciente enquanto não entra nem sai nada de e para os pulmões. Por fim, evidentemente, voltei a respirar (estou aqui a contar a história, não é?), primeiro muito "de fininho", depois arquejando como os cachorros.
Abreviando e saltando já uma data de capítulos: na 5ª Feira, um médico de clínica geral, após um estranhíssimo exame (virando de perfil, depois dobrando para a frente, braços em cruz, coisas assim), diagnosticou "nevralgia intercostal". Lembro-me perfeitamente deste médico, porque tinha (e tem, ainda lá está, no mesmo consultório) de nome o mesmo que o estádio de uma equipa que está agora na III Divisão nacional. Um apelido e uma divisão perfeitamente adequados a ambos, clube e médico. Fui aviado com um medicamento chamado Nimed, e chuta pra cá sete continhos.
Desconfiado porque a coisa não melhorava, no dia seguinte - 6ª Feira, por conseguinte - consultei um pneumologista (12 notas de mil). Contado e recontado o episódio, comecei a sentir-me um pouco apreensivo quando o Doutor se levantou e se pôs a fazer-me palpação dos gânglios linfáticos.
_ Fuma?
_ Dois, três maços.
_ Há quanto tempo?
_ Vinte e tal anos.
Seguiu-se a trivial via-sacra das "análzes" a isto e àquilo, mais as radiografias da ordem. Houve um episódio curioso, na sala de espera do RX. Em 99,9% dos casos, as pessoas esperam, são chamadas, tiram "a chapa", voltam à sala de espera e, uns minutos depois, são de novo chamadas pelo nome e é-lhes entregue um envelope, acompanhado com a fórmula "bem, pode ir, boa tarde". E pronto, tirar radiografias é isto. Mas comigo, daquela vez, reparei que já tinham saído muitas pessoas que tinham chegado depois de mim. Mas que raio?! Perderam as minhas "chapas"?
Finalmente, aparece uma senhora de óculos, que pergunta, com um ar bastante esquisito: "quem é Fulano de Tal"?. Como um puto na escola, levantei o dedo. Venha comigo, diz ela. Canudo. O que diabo se passa?
A senhora dos óculos aponta-me uma radiografia encaixada naquela coisa que tem luz por dentro. "Ora então, diga-me lá: o que é isto?" E apontava uma mancha branca, do tamanho de uma mão aberta, na parte inferior daquilo que devia ser o meu pulmão direito. Sei lá bem o que é isso, disse eu. Diga-me a senhora o que é!
Das duas uma: ou pensou que eu era um perfeito idiota ou que estava a gozar com ela. "O seu médico é perto? Ah, é já ali. Pronto. Então leve isto, vá lá, mas vá já, não leva relatório nem nada, o Doutor vai logo ver o que é e diz-lhe. Não. Não insista, não me compete a mim dizer-lhe, eu não sou médica, o sôtor que lhe diga. Vá lá. Depressinha. Adeus. Boa sorte."
Mau mau mau. Uma nevralgia intercostal faz buracos nos pulmões?
_ Xôtor, trago aqui o raio X e as análises.
_ Sente-se aí.
(clic, chapa no vidro com luz)
_ Heixe!
_ Como?
_ Tchh.
_ ...
_ Ó amigo, olhe, eu não sou de meias-tintas e nem gosto nada de encanar a perna à rã, como se costuma dizer. Vou-lhe dizer a minha opinião, já, e esteja absolutamente à vontade para consultar quem entender, pedir uma segunda opinião, ou terceira, ou as que quiser. O que o senhor tem é uma neoplasia. Noventa e nove por cento de probabilidades. Há ainda uma hipótese, remota, mas enfim; pode ser que seja um derrame organizado. Ou pode ser que seja benigno. Nunca se sabe. Quer que lhe explique?
Queria, claro que queria. O homem puxou de umas folhas e começou a fazer desenhos, as pleuras (eu sabia lá que a gente tem duas e não uma), o que acontece quando um tumor se começa a desenvolver, se for ali, ali, ou ali; as diferenças entre os tipos de tumores, o que é uma massa consolidada.
Havia uma esperança, uma boa esperança, excelente, de um por cento, de que a coisa fosse o tal derrame organizado. E, atendendo ao meu estatuto de veterano em SG Filtro, uns 10 ou mesmo 20% de que, a ser neoplasia, não fosse tumor cancerígeno. Até podia ser que, se acertasse no totoloto (os tais 1% do derrame organizado), não fosse necessário abrir-me o "capot"; vazava-se a coisa com umas sondas e umas punções. O excelente pneumologista despediu-me com as seguintes aligeirantes, animadoras palavras:
_ Se for derrame, não se esqueça de fazer o totoloto, porque é sinal de que você anda com uma sorte dos diabos.
Pois, era exactamente como eu me sentia, o tipo mais sortudo do mundo. Um felizardo. Foi assim que passei aquele fim-de-semana: todo contente, como é fácil imaginar.
Não esquecendo que estas chatices, como as avarias nos automóveis, apenas sucedem às 6ªs Feiras, e que, em Portugal, nada funciona senão no primeiro "dia útil" seguinte, na 2ª lá fui fazer a TAC (tomografia axial computorizada). O director lá daquela coisa, provavelmente avisado, fez questão de vir pessoalmente dar a notícia: derrame, nada de grave.
Ora bem. Eu, que nunca tinha feito mais do que um mísero "4", acabava de ganhar o totoloto, a lotaria e o acumulado do bingo, tudo junto e a pronto, livre de impostos.
Capítulo CXII: as punções não resultaram. Fui internado no serviço de "cardiorrespiratórias" (acho que é assim que se designa) do Hospital de Santa Maria e operado no dia seguinte.
O que dizer do que vi? Excelente, é pouco. Lembro-me de entrar na "sala de preparação" (também acho que é assim que se diz) como quem entra num filme; da sala de cirurgia, enquanto me enfiavam uns tubos e umas mangueiras, chegava-me um som celestial, pareceu-me Mozart; à minha volta, não sei quantas pessoas atarefavam-se em silêncio, cada qual sabendo perfeitamente o que fazer. Trabalho de equipa na perfeição, equipamento pronto e reluzindo, aparelhos e instrumentos por todo o lado, numa ordem quase marcial. Tudo em volta ressumava competência e profissionalismo. Naqueles breves instantes, ou por causa da anestesia que já ia fazendo efeito ou fosse pelo que fosse, senti um imenso orgulho em ser Português.
_ Isto é tudo por minha causa?
_ É. É tudo para si.
_ Que giro.
_ Olhe. Agora vou-lhe pôr esta máscara, vai sentir um fresquinho, deixe estar; vê? É bom, não é? Agora vou contar de 10 para trás. Sossegue. Oiça. Dez nove oito sete seis cin...
Estou vivo e fumando de novo. Dois diagnósticos errados depois, se bem que um deles apenas estivesse 99% errado. O primeiro poder-me-ia ter custado a vida. De facto, aquele clínico geral com nome de estádio deve ser uma perfeita besta. Ou estava bêbedo, ou gostava de ginástica. Tanto faz. O pneumologista estava apenas 99% enganado, mas também estava 1% certo. E foi ele, o médico e não a percentagem, quem me salvou a vida. Com todos estes incidentes de percurso, ainda assim, tive - por via desta série de azares - a insubstituível sorte de conhecer o sistema nacional de saúde (SNS) por dentro, de conhecer verdadeiros profissionais de saúde e de, principalmente, ficar a saber que um e outros funcionam perfeitamente. Como doador de sangue, não paguei nem um tostão pela operação, da ridicularia que é cobrada pelo Estado português numa intervenção cirúrgica deste calibre - a qualquer cidadão, em quaisquer circunstâncias.
Claro que trocaria toda esta sorte que tive por um murro nos dentes, ou por um valente soco no estômago, mas, ainda assim, parece-me que sempre é melhor poder emitir uma opinião a respeito (seja do que for) tendo conhecimento de causa do que não o tendo. E não é tomando, como se costuma dizer, a árvore pela floresta, que se pode fazer (ou ter) qualquer espécie de juízo: sobre os outros ou sobre nós mesmos. E é claro também que, a respeito dos casos terríveis de má prática médica, aqueles que são referidos nos comentários do blog de João Tilly ou quaisquer outros, existem apenas duas opções, ou acções concomitantes: por um lado, o mais absoluto e respeitoso silêncio; por outro, a óbvia e cívica exigência de que sejam apuradas responsabilidades e accionados os meios de punição legais.
Contudo, sempre me irritaram profundamente as lúdicas actividades, tão em voga no nosso país, da caça ao quadro e do tiro ao profissional qualificado. Ou seja, a perseguição sistemática e insidiosa a médicos, professores, enfermeiros, engenheiros, arquitectos, juízes, advogados e mesmo, de forma mais generalizante, a intelectuais ou pessoas do saber, como historiadores, cronistas, investigadores, academistas, etc. É uma moda surgida no PREC e que perdura ainda hoje, com outras roupagens e motivações, mas de igual forma assanhada, persistente, violenta, instituída e instilada de forma vertical no tecido social português. De toda a anódina massa de "privilegiados", os alvos mais comuns - provavelmente pelo seu número e pela maior proximidade - são os médicos e os professores; em Portugal, uns e outros são tidos geralmente por, abreviando um longo rol de mimos, grandessíssimas "bestas"; se é médico ou professor, é um cretino da pior espécie. A coisa, para os médicos, é um pedaço mais pesada, porque lidam não com saberes e competências mas com a saúde e o bem-estar ou, em última análise, com a própria vida; se os professores são, em grande parte responsáveis pelo futuro, os médicos lidam com o presente e podem, com as ferramentas de que dispõem, determinar se este ou aquele terá ou não futuro. Em suma, as coisas são diferentes para ambos os tipos de bata branca mas é aos profissionais de saúde que, por maioria de razões, toca o pior bocado.
Desde miúdo, sempre senti uma tremenda admiração pelas pessoas que trabalham com a doença, com a deformação e a malformação, com a dor e com a morte. É uma prova de que Deus existe, haver quem trate dos outros, haver quem saiba fazer uma simples tala ou abrir um ser humano, mexer lá dentro, coser tudo outra vez. Ou quem saiba mudar um penso, suturar uma facada, reencaixar partes desenculatradas, anestesiar sem ser para sempre, diagnosticar apenas com os olhos, os ouvidos e as mãos. Ainda mais espantoso quando muitas das pessoas que fazem tudo isto e muito mais o fazem por gosto, algumas com verdadeira devoção, sem nunca lhes ocorrer mudar para qualquer outro modo de vida.
Os médicos erram tanto como eu ou como qualquer outra pessoa, seja em que profissão for. Mesmo dando de barato que nenhum de nós, outros, tem nas suas mãos o saber e o poder de dar o alívio, a cura ou a própria vida a perfeitos desconhecidos. Se existem provas para condenar um médico, condene-se esse médico - não os outros. Crucificar é fácil, e atirar pedras também. Mas não serve para nada, nem ajuda ninguém.
(A propósito, e também como interveniente na polémica, veja-se o "post" do blog
GinTónico sobre erro médico, e um outro concretamente sobre
a polémica entre João Tilly e Alfredo Vieira)