O vernáculo revisitado - subsídios para o estudo da c*r*l*ada, em três actos
Uma parte (1) dos nossos (3) leitores ocasionais tem manifestado repetidamente algum incómodo com a incongruência que existirá entre a nossa reiterada mania da perfeição - que se manifesta em frases invulgarmente compridas e, ainda assim, gramaticalmente correctas, por exemplo - e a utilização quiçá abusiva do mais puro e duro vernáculo, por vezes de forma absolutamente deslocada e/ou despropositada. Que a mesma coisa pode ser dita (e feita, presume-se), de igual modo e com outra elegância, sem ser necessário o uso de grosserias a torto e a direito.
Pois minha cara amiga, quer-me parecer que se equivoca nesse ponto. Vejamos alguns casos mais significativos.
Dizer ou escrever "pénis", como em "vai para o pénis que te f*d*", em vez do equivalente vernáculo "vai para o caralho que te foda", há-de concordar, seria ridículo e ninguém se atreveria e usar tão pífia forma de insulto. Uma coisa é o termo técnico, outra bem diferente é a forma por assim dizer arcaica da coisa, isto é, caralho, com todas as letras, insubstituível expressão do Português corrente. Ninguém diz, por exemplo, mesmo se for mulher, "olha-me só aquele par de seios"; é "mamas" que se diz, neste contexto, não seios; só existem grandes pares de mamas, não estou bem a ver como pode alguma senhora transportar consigo um grande par de seios; seria incómodo, para não dizer que soa pessimamente. A mesma diferença, e não apenas semântica, existe em tudo aquilo que se refira a "cuzes", por exemplo, como dizia uma velha amiga, empregada de limpeza e pessoa muito dada a estas questões linguísticas; "cuzes" significa, no seu dela linguajar característico, o plural de "cu", como é evidente; é perfeitamente legítimo que se use a forma (entretanto caída em desuso) "peida", ou mesmo "peidola", mas nunca por nunca "nádegas" ou, muito menos, "fundo das costas"; é pindérico e não fica bem. Cu é cu, mamas são mamas ("tetas" já é um bocadinho brutal), não se pode dizer de outra forma e acabou-se.
É como dizer (ou escrever) "ganda" em vez de "grande". Não confundamos "grande treta" com "ganda treta". Trata-se de tempero prosódico, de lascívia verborreica, sei lá, é uma espécie de êxtase linguístico - coisa bem diferente de ter língua viperina, como sabemos, isso sim uma ganda merda.
Se mando alguém para a puta que o(a) pariu, nem me refiro à progenitora do indivíduo, a qual, de resto, muito provavelmente não conheço, nem sequer pretendo insinuar que estou assacando à senhora tão desprestigiante, ainda que antiga e imprescindível, profissão ou modo de vida. O busílis frásico reside mais no verbo (mandar) do que em qualquer dos complementos ou elementos prosódicos. Vá para a meretriz que o deu à luz não quer dizer porra nenhuma e seria, parece-me, muito mais insultuoso, porque tecnicamente radical, irreversível, cirúrgico. Numa palavra, badalhoco.
E há depois essa coisa altamente desopilante que é não se ficar a gente pelas meias tintas; dizer-se o que se tem a dizer, em certas ocasiões, só pode ser de uma maneira, e esta é, quer queiramos quer não, debitando grandes caralhadas, alto e bom som, como manda a sapatilha. Levante a mão quem nunca disse na vida FODA-SE, ao menos uma vez. Dizer FODA-SE não é dizer foda-se, simplesmente; é expelir com veemência um dos mais profundos sentimentos que o ser humano pode experimentar; e quem diz foda-se diz outra coisa qualquer. Existem mesmo expressões populares completas, verdadeiras rituais de desopilanço, como PORRA PORRA PORRA PORRA PORRA PORRA PORRA PORRA, assim, infinitamente, até que a crise passe ou, quem sabe, o chefe deixe de chatear, lá na repartição. Trocadilhar ou usar de fina ironia são duas das inúmeras formas de que se pode revestir esta naturalíssima forma de expressão, aquilo a que se chama vulgarmente "deitar cá para fora". Daí o uso do vernáculo ser considerado, por algumas nada estúpidas sumidades, como uma terapia existencial eficaz, uma alternativa credível a coisas tão violentas como o Prozac ou o irmão do Dr. Jorge Sampaio.
A propósito, escreveu não sei que psiquiatra que a vida humana se resume a esconder a merda (vê, cara amiga, até um psiquiatra diz "merda" e não "fezes"); no original, dizia ele que il faut toujours cacher la merde, querendo com isto significar, em suma, que o ser humano passa a vida tentando descartar o seu lado animal; tentamos por todos os meios fingir que somos seres superiores, que não urinam, não defecam e não têm relações sexuais da mesma forma que outro animal qualquer. Para este ilustre pensador, as actividades humanas regem-se por este impulso básico, meras tentativas de elevação e de fuga à humana condição; "cacher la merde" implica fechar a porta da casa-de-banho, com certeza, e ainda bem que assim é, mas implica também muito mais subtis coisas, como fingir superioridade e distanciamento em relação a tudo o que nos possa recordar o nosso primitivismo essencial. Não esqueçamos que o ser-humano é um animal como qualquer outro, uma perfeita besta, para simplificar, e que, se porventura tivessemos evoluído a nível fisiológico em paralelo com a nossa suposta evolução civilizacional, hoje nenhum de nós teria necessidade de comer, beber ou procriar; se o resto do nosso corpo tivesse acompanhado a evolução do cérebro, hoje em dia ninguém teria aparelho digestivo, porque não seria necessário comer ou beber, e a questão reprodutora estaria resolvida por meios tecnológicos. E então, de facto, não existindo qualquer dos aparelhos digestivo, urinário ou reprodutor, extinguir-se-ia 99% do acervo grosseirão. É esta incongruência entre o nosso alto nível civilizacional, que não tem absolutamente nada a ver com o que era "no início", e o nosso lado bestial, que ficou exactamente na mesma, aquilo que nos faz tentar esconder a merda, custe o que custar.
Nesta ordem de ideias, e por apego ao pormenor, poder-se-á deduzir que evitar o vernáculo é uma das inúmeras formas de "cacher la merde"; o que tem o seu quê de ridículo, até pelas formas de que se reveste essa espúria e por vezes desesperada tentativa de "purificação"; não é por não se dizer nunca "merda" que a merda deixa de existir; não é por se substituir algumas letras, num "palavrão", por asteriscos ou por outros sinais gráficos estranhos, que o "palavrão" deixa de o ser; apenas se consegue, com essa estúpida manobra (escrita, totalmente escrita, porque não existem asteriscos na oralidade), chamar ainda mais a atenção para o calão que supostamente se pretendia evitar. Lê-se muito, por aí, mesmo escrito por pessoas que não são perfeitos idiotas, coisas como "F***-se!" ou "ai o c**alho" ou ainda, com grafismos de banda desenhada, "seu grande f*#!o de uma p#$a"; por exemplo. Ora aí está la merde pas si bien cachée.
Enfim, minha cara amiga, findemos. Como vê, bem pode tirar o cavalinho da chuva. Mesmo concedendo que o 001, nosso agente secreto e rapazola inconsciente, por vezes se excede um pouco, há que admiti-lo com frontalidade, não será por causa desse pindérico do caraças (viu, esta foi para si) que deixaremos, cá no pasquim, de usar e abusar de tão categorizada forma de expressão. É que, e esta agora não é para si, cara amiga, como estamos fartos de dizer, a gente está-se bem cagando para quem lê ou não estas merdas que aqui pespegamos. Que se fodam todos mai-los seus pruridos da tanga. Que vão morrer longe, c'os respectivos geniozinhos do caralho às costas.