Roçar mato
Meus caros (3) leitores, como toda a gente vai debitando seus avisados palpites sobre o assunto, pois eu também quero. Lá vai palpite sobre o fogo, os fogos, Portugal a arder, etc.
Aquilo que me encanita e me apresso portanto a comunicar-vos, a todos os três, é a respeito de uma das causas mais referidas como explicação, ou causa, dos incêndios florestais: a "limpeza" das matas. Todo o bicho careta, desde o simples "popular" entrevistado pelo repórter no local ao ministro mais pintado, em ilustre mesa-redonda, toda a gente enfim "acha" que o problema é que os bosques e pinhais não ardiam se estivessem "limpos", isto é, sem "mato"; se bem entendi, tratar-se-ia então de pôr uma quantas pessoas a roçar mato, de Outubro a Maio, por forma a que, no Verão, o fogo não, digamos, hmmm, portanto, a bem dizer, ardesse; recompondo a frase, a ver se a gente se entende: a mata sem mato não arde. Espantoso. Estou varado, por assim dizer.
Portugal tem (tinha, até há uns dias)
uma das maiores áreas de floresta, em percentagem, de toda a Europa: 8,9 milhões de hectares de terrenos vocacionados, dos quais 3,3 estão (estavam) efectivamente florestados.
Façamos umas continhas de cabeça, começando pelos números básicos: hectare é o mesmo que 10.000 metros quadrados, ou um quadrado com 100 metros de lado; para facilitar, e como se costuma dizer, é sensivelmente equivalente ao relvado de um campo de futebol (120X80); portanto, a área florestal a "limpar", segundo os iluminados ministros e populares, seria qualquer coisa como 3,3 milhões de campos de futebol. Escusado será dizer que a floresta não é plana e lisa como os relvados da Luz ou de Alvalade; mas isto é detalhe. Temos, portanto, 3,3 milhões de hectares (que poderão ir a 8,9) para "limpar", todos os anos, durante 240 dias - evidentemente, incluindo Sábados, Domingos, dias feriados, "pontes" e outras artistices nacionais. Ora, isto dá 13.750 hectares (campos de futebol) por dia; a oito horas de trabalho por dia, isso é que era bom, mas enfim, teríamos então 1.718 campos por hora. Quantos metros quadrados de mato consegue um ser-humano roçar, por hora? 50? 100? Vale a pena continuar?
Não, não vale, até porque isto é uma falsa questão. Que se faça isso nas imediações das habitações, nas bermas das estradas, etc., claro, encantados; muitas vezes, o fogo chega a edifícios e infraestruturas precisamente porque as imediações estão, aí sim, "sujas". Mas esta "sujidade" é diferente, os motivos são diferentes, e diferentes são os meios necessários para a "limpeza". Na floresta, o mato faz parte do ecossistema: restolho, caruma, rebentos, caniços, flores, frutos, árvores mortas, galhos caídos, tudo é ou virá a ser matéria em decomposição que irá alimentar a própria floresta; caso se removesse toda essa matéria orgânica, como poderia a floresta sobreviver?
A Amazónia, por exemplo, foi alguma vez "limpa"? Alguém até hoje se lembrou de roçar todo o mato de qualquer floresta, seja ela "virgem", natural, ou de plantação humana, mesmo as de exploração industrial?
O argumento de que o fogo se propaga através do mato rasteiro, o que é rigorosamente verdade mas apenas meia-verdade, não vinga, pura e simplesmente; mesmo sabendo que existem diversos tipos de exploração florestal, é óbvio que os grandes incêndios florestais se propagam também de árvore para árvore, seja pelas copas seja pelo simples aumento da temperatura nas imediações do foco; o vento encarrega-se de propagar o fogo a grande velocidade, com mato ou sem mato.
Os húngaros, que também têm árvores lá no país deles, inventaram uma máquina de extinção de incêndios muito engenhosa: tiraram a torre a velhos tanques de guerra e montaram-lhes em cima uma turbina de avião a jacto; esta espécie de tanque a jacto, telecomandado, aproxima-se da frente do fogo e, ligando o jacto na potência máxima, apaga-o com o sopro fabuloso. Mistura de T34 e Mig19, esta máquina de paz feita de despojos de guerra já deu provas mais do que suficientes: funciona, que é o que interessa. E, além disso, recicla material de sucata.
Já os americanos e canadianos, por exemplo, adoptam diversas estratégias, em função de cada tipo de incêndio. No caso dos grandes fogos florestais, juntam diversos especialistas, de múltiplos ramos e, com a ajuda de instrumentos, calculam onde devem começar a cavar; usam retroescavadoras e arrasam tudo no perímetro calculado, isolando o fogo; fazem um anel de vazio, espécie de terra-de-ninguém a toda a volta, e dali o fogo não passa.
Em Portugal, dá-se mangueirada nas labaredas e atiram-se uns baldes de água para cima do fogo. Calda retardante, pelos vistos, não temos. Os aviões e helicópteros despejam uns litros, mais ou menos no sítio que está a arder, e vão dali reabastecer a 300 km.
Em Portugal, a boa vontade e o esforço dos
bombeiros não chegam para muita coisa. Em Espanha, que ainda é aqui ao lado, arderam 10% da nossa área queimada; num país que, mesmo não sendo tão relativamente florestado, é absolutamente 546% maior.
Em Portugal, estão mais de 20.000 soldados nos quartéis, atentos à muito provável invasão de melgas e mosquitos.
Pronto. Era isto. Obrigado pela paciência, amiguinhos.