Caro Dragoscópio, tenha lá santa paciência. Esta coisa é recorrente e vagamente irritante, mas o que se há-de fazer? O amigo draga-me os assuntos, antecipa-se-me nos temas, ou pura e simplesmente é bruxo. Essa é que é essa. E mais uma vez calhou, desta a propósito de nosso Dâmaso Salcede.
Que raio. Mania.
Volta e meia, estou eu posto em sossego, a mais os meus botões, sem chatear ninguém, arquitectando mentalmente os meus "posts", qual deles o mais suculento e genial, respectivamente no conteúdo e na forma, e eis senão quando, à cautela, abro o seu "blog" e lá está: pimba, escarrapachadíssimo, o Drago escreveu primeiro sobre a mesma coisa, sacou-me de novo por adivinhação os planos da pólvora.
Você é bruxo, acredite. Já não é esta a primeira nem segunda, e suponho não será a última. Canudo. Andava eu há uns dias com um textozinho na carola, super catita, posso afiançar, sobre o Dâmasossalcedismo, precisamente, e nem de propósito - lá estava sua não menos brilhante crónica sobre a mesmíssima coisa. Irra. Ganda galo.
Mas enfim, como digo, tenha paciência. Sou absolutamente compelido a desalojar o arrazoado da minha pobre cabeça, para dar lugar a outro, evacuá-lo, por assim dizer, para este papel virtual.
Aguente-se. O tema é o mesmo, o latinório é que nem por isso. Aí fica, portanto, compulsivamente despejado, exactamente como era.
In dubio pro salcede
Dâmaso Salcede é um dos protótipos sociais mais fixos e mais nítidos, de entre a galeria de personagens criadas por Eça de Queirós. Excelentemente acompanhado por figuras de igual, cirúrgica, claríssima estereotipia, como o Conselheiro Acácio, Afonso da Maia, Basílio, o "Príncipe" de Paris ou o próprio alter-ego do autor, João da Ega; entre muitos outros, evidentemente, para sempre cristalizados por Eça como entidades identificadoras de géneros, perfis humanos e sociais: o "dandy", o patriarca, o nobre, o pulha (Palma Cavalão, por exemplo), o lírico empedernido (Alencar), o estafermo no feminino (a criada Juliana), e tantos, tantos outros, produzidos pelo "olho clínico" daquele que será talvez o mais espantoso escritor de Língua portuguesa de todos os tempos. A galeria de tipos queirosianos ou, melhor dizendo, a galeria queirosiana de tipos, não se restringe a estampas escritas que definem e caracterizam determinados tempo e espaço; a Lisboa do séc. XIX é ainda hoje a mesma, em traços largos e no essencial; o ambiente beato de Leiria, ou de qualquer outra cidade de província, permanece um lugar-comum e, como os outros ambientes fixados na obra de Queirós, universal e intemporal.
No entanto, não será abusivo especular que é na personagem Dâmaso Salcede, poltrão, rico e balofo, que se concentra a maior carga caricatural e, por consequência ou por paradoxo, a menor nitidez representativa; talvez seja esta a figura cuja personalidade, por mais discutível, se poderá tornar relativamente frágil, enquanto protótipo, e mais dúbia, enquanto carácter. O estereótipo do "bon vivant", anafado e muito contente de si, frívolo e ignorante, inconveniente mas jovial, não tem a mesma eficácia, o mesmo rigor, a mesma definição inquestionável de muitas das figuras do universo queirosiano. Dâmaso, o "dâmasozinho", representa não apenas a figura do tolo social como também, de forma subtil e nunca expressa, o estereótipo nacional da mediocridade triunfante; será, por conseguinte e apenas nesta medida, um "cromo" absolutamente representativo e actual, mas também passível de discussão e polémica.
É interessante verificar ser esta a única personagem que não sofreu qualquer espécie de modificação entre o original em bruto (
A Tragédia da Rua das Flores) e a obra acabada (
Os Maias). Irrelevante será agora analisar a bambochata editorial que permitiu a publicação do esboço como se de obra acabada se tratasse e como se fosse coisa distinta daquilo que o autor, mais tarde, reviu, remodelou, reescreveu e por fim publicou, em 1888: o romance
Os Maias. Era e é esta a obra, o outro texto não passou de esboço guardado na gaveta, que nunca deveria ter sido publicado em edição regular - a não ser para efeitos de estudo, para quem se interessa pela cultura queirosiana e não para o público em geral.
Ora, precisamente, um estudo comparativo, ainda que superficial, entre esboço e livro, a análise da forma como evoluiu, como se passou de uma coisa a outra, permite concluir que apenas se mantiveram inalteradas duas coisas: a ideia-base original e a personagem Dâmaso Salcede. A Genoveva da Rua das Flores tem muito pouco (ou nada) a ver com a Maria Eduarda d'Os Maias; o Tio Timóteo sobe a Avô Afonso, perde a perna de pau, passa a senhor nobre e antigo; Vítor é agora Carlos, neto e não sobrinho, herdeiro rico e não pobre herdeiro. Tudo, ou quase tudo, muda radicalmente - mesmo o tema central, o incesto - e por fim, mesmo das duas excepções resta apenas uma: Dâmaso Cândido de Salcede. Além do mais, Dâmaso é Cândido... como adjectivo, como o de Voltaire.
O que indicia claramente alguma espécie de estima por parte do autor em relação à desgraçada personagem de apelido vistoso. Talvez alguma comiseração e, quem sabe, um certo carinho por aquele maníaco do "chique", o pobre "corno manso", pacóvio, estúpido, imbecil Dâmaso. A "besta do Dâmaso", pobre diabo, tinha talvez no próprio Eça o único amigo sincero, dele recebia em exclusivo um pouco de piedade, ao menos, ou, não sendo isso possível, nota-se-lhe na escrita, aqui e ali, um módico de caridade... cristã ou outra. Dâmaso representa, de facto, o que de pior se pode encontrar num ser humano - a cobardia, a vacuidade, a estupidez - mas tem em sua defesa, até por inerência de condição social, o ferrete da ignorância total, absoluta, esmagadora. Ao Dâmaso nunca poderia ocorrer o que o Dâmaso é, pela simples razão de que nenhum imbecil sabe que é um imbecil (se o soubesse, não o seria) como, de resto, ninguém tem perfeita consciência daquilo que é na realidade.
A figura concentra, em doses industriais, o que de mais odioso existe em cada um de nós, as características com as quais ninguém se identifica, tudo o que a decência manda se rejeite, o que a vergonha obriga a que se recuse. É facílimo bater no Dâmaso, como em qualquer fantasma, porque o Dâmaso não se defende; não sabe como; desconhece outra coisa que não seja o ataque soez, a maledicência, o disfarce. Quanto mais fala e faz, mais se "enterra". A forma canalha como toda a gente o explora indecentemente, a começar pelos próprios "heróis" da trama, Genoveva/Maria Eduarda e Vítor/Carlos, é um indício de que o autor nutre alguma simpatia pela personagem; não sendo nem de longe impolutos, os "heróis" e todos os outros, e não sendo eles próprios nenhuns modelos de virtude, pelas permanentes diatribes de Dâmaso perpassa um rasto de exorcismo, como se Eça concentrasse nele toda a raiva do universo, mas como se dissesse também aos seus leitores "coitado do Dâmaso, pobre diabo, não lhe batam mais, já chega". Uma espécie de mensagem subliminar, cristã, bíblica: perdoai-lhe, porque ele não sabe o que faz.
Não ter coragem, não ter inteligência, não ter cultura, são coisas que valem tanto como não ter qualquer resquício de beleza física; a estupidez, a ignorância e a cobardia são características do ser humano tão alteráveis, corrigíveis ou modificáveis como ter nascido sem orelhas ou com o nariz na testa. Não existe cirurgia estética, muito menos de valores, para o carácter. Um imbecil é perfeitamente inocente daquilo que a sua estupidez ocasiona; pode-se ser pessoa "portadora de deficiência" da personalidade, das conveniências, ou daquilo a que se convencionou chamar "normalidade", como se pode carregar cegueira ou paralisia, por exemplo. Não há culpados, apenas vítimas.
Coitado do Dâmaso. Dar bengaladas no Dâmaso é uma cobardia. Ter pena dele já é castigo suficiente.