Odi profanum vulgus et arceo

26/07/05

Shoot you down



17. Shoot You Down - The Stone Roses (The Soul Hooligan Remix)
John Squirre Brown

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24/07/05

ablação


Esta aqui foi naquele dia, lembras-te, estavas tão absorto com a beleza da paisagem, debruçaste-te de mais e quase caíste, ficaste pendurado pela ponta dos dedos no granito da amurada. Foi naquele miradouro de Santa Luzia, lembras-te? Nem sabes como sobreviveste, de onde te veio a força para te içares como um Hércules, as unhas em sangue, as mãos e os joelhos, tudo esfolado, o coração aos pulos, bum bum bum bum bum, e lá conseguiste passar outra vez para cima, nem sabes bem como, primeiro uma perna, depois um braço agarrando a pedra nua, upa, mais um esforço, já sem ar nos pulmões, finalmente, eis-te vivo, o precipício lá em baixo, ainda assim tentador, mais belo do que nunca.

Esta, a mais comprida e fina, vês, esta a azul escuro, foi quando morreu a tua gata. Há quantos anos isso vai, e olha agora, que marca horrível, que terrível cicatriz! Adoravas a Cláudia, não era? Pois, bem se vê, olha só que espectáculo, parece o "Grand-Canyon", de cima a baixo, enrolada como uma serpente. Adoravas aquele bicho, coitada da Cláudia, esmagada por um camião mesmo à tua frente. Nunca te perdoaste pela brincadeira, não é? Fizeste-a fugir para a estrada, ela estava farta de brincar às escondidas contigo; foi só um segundo, uma fracção de segundo, a gata correu, o camião veio e passou-lhe por cima, primeiro a roda da frente, depois as de trás, maldito camião. Mas ela não sofreu, afianço-te, nem sentiu nada.

Esta já nem sei ao certo, há que tempos isto vai, parece-me que foi no dia em que recebeste um prémio qualquer, na escola primária. Eras um garoto e ali estavas, de calções, quase morrendo de vergonha por estar aquela gente toda a olhar para ti. Tinhas quantos, oito? Nove? Pois, isto é como as fotografias, fica aqui tudo gravado, olha, esta é uma cicatriz de satisfação, é uma marca de orgulho imenso, é aquilo que resta de quando se sente alguma coisa tão intensamente que é quase como se o peito fosse explodir. Mesmo que passem décadas, há coisas que ficam para sempre aqui registadas.

Tudo deixa marcas no coração. Todas estas cicatrizes são o resultado da tua vida, principalmente das coisas más que te foram acontecendo, mas também das coisas boas, é igual, fica tudo gravado em relevo, mas apenas as coisas mais importantes são visíveis a olho nu. Olha mais esta aqui, por exemplo; foi naquele assalto, em finais dos anos oitenta. É natural, não estavas a contar, não esperavas uma coisa daquelas, ainda por cima com um especialista na matéria, quando ele te saltou em cima e começou a bater-te na cabeça com uma pedra da calçada pensaste que ias morrer; compreendo perfeitamente; sentiste aquilo como uma fatalidade, pensavas "é desta - vou morrer". Chegaste a dizer isso em voz alta, várias vezes. Depois, quando acordaste, a tua única preocupação era porque tinhas o blusão, que era branco, cheio de sangue. Aquele episódio acabou por se transformar em algo de cómico, ou patético, mas bem depressa fizeste por esquecer. Mas a marca ficou, aqui está ela.

Ou esta, desta lembras-te tu com certeza, esta é de quando morreu o teu filho, aquele que nunca nasceu. Foi numa época muito feliz da tua vida, mesmo sem dinheiro, mesmo não sabendo tu como poderias sustentar uma criança; não tinhas emprego nem nenhuma fonte de rendimento, nessa altura, e a tua mulher -ou namorada, como se dizia então - decidiu fazer um aborto, quase aos cinco meses de gestação; e tu ficaste ali mudo e quedo, quando ela te disse aquela coisa horrorosa, ficaste especado no meio da rua, sem qualquer reacção. Mas é isto, como vês, está aqui. A dor lancinante que sentiste no coração deu nisto, este traço escuro aqui, esta coisa retorcida, vês? E, nestes anos todos, desde aí, sempre que te lembravas disso, mesmo a dormir, a cicatriz inchava mais um bocadinho, latejava por momentos, e tu sentias-te mal, muito mal, quase sufocavas com a dor no peito.

Quando as pessoas falam em "males do coração", como vês, nem fazem ideia de como estão certas. Não há nenhum mal que não atinja o coração, realmente: tudo aquilo que nos aflige, ou assusta, ou aterroriza, fica mesmo gravado no coração, quase como se fosse a ferro e fogo. Estas cicatrizes são a prova real das provações de cada qual, são como que o registo histórico daquilo que de verdadeiramente importante sucedeu na vida de cada um. E eu abro toda a gente que aqui vem por fim parar, vejo todos os corações com minúcia e curiosidade. É essa a minha função, não sei nem quero fazer outra coisa. Examino corações e reconstituo-lhes a vida que durou enquanto bateram.

Há quem imagine que eu sou uma espécie de sádico, porque trato os corpos de seres-humanos mortos como se fossem vitelas ou bezerros. Isso não é verdade. Manuseio apenas matéria inerte, é certo, mas sempre com respeito, quase com veneração. Posso extrair órgãos, posso dissecar tecidos e seccionar membros, exactamente como faz qualquer talhante, mas com o coração é diferente. Deformação profissional não será, talvez fraqueza apenas; a verdade é que o coração humano é uma coisa que me fascina. Pego-lhe com as minhas mãos, estudo, viro e reviro, tento sempre adivinhar o que aconteceu aqui e ali, o que terá acontecido exactamente naquela ocasião, que tragédias terríveis ou coisas maravilhosas poderão ter causado marcas tão profundas.

É por isso que falo assim contigo, com todo este à vontade, como se fôssemos amigos de longa data e como se conhecesse em detalhe aquilo que tu foste em vida. Faço por vezes o papel de Deus, que Ele me perdoe, e falo então como se fosse Ele mesmo a falar com alguém que se lhe apresenta no dia do juízo. Mas isto é apenas uma peça que sempre represento para mim próprio. Tento descobrir a alma que se eleva dos mortos e surpreender o momento em que isso acontece. Tento, no fundo, simplesmente não enlouquecer; sabes, não é fácil lidar todos os dias com a simplicidade da morte. Ainda há poucas horas estavas lá fora, no mundo, vivo e cheio de genica, lutando com todas as tuas forças, contra tudo e contra todos, correndo atrás de um futuro qualquer. Agora estás aqui, nesta mesa de zinco, e das tuas lutas apenas sobram as cicatrizes, e não há aqui mais ninguém senão eu para recordar as tuas grandezas e as tuas misérias, e para que ecoem uma última vez, entre estas paredes brancas, as verdades que sobre ti acabei de inventar. Afinal, não te conheço de lado nenhum, nunca te conheci, e eu para ti não passo de um perfeito desconhecido.

Portanto, desculpa lá a rudeza, e se porventura fui bruto ainda há pouco peço perdão, mas agora vou ter de te meter outra vez na gaveta. Dorme em paz. Adeus.

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21/07/05


Consultório sentimental (4)

Maria da Encornação

Para variar, esta consulta não começa com citações de correspondência recebida. Não seria muito provável, aliás, que alguma carta ou e-mail aqui chegasse com dúvidas ou perplexidades deste jaez: "a minha mulher traiu-me, Xôtor, e agora?". De qualquer forma, o tema desde há muito estava engatilhado e não é tarde nem é cedo, aí vai, inteiramente grátis como os outros. Por se tratar de questão extremamente sensível, e dada a inevitabilidade da utilização de linguagem desbragada, a respectiva leitura não é aconselhável para menores de 40 anos.

Conheci Maria da Encornação em meados de 1995, ela na fila da direita e eu na da esquerda, ambos parados num sinal vermelho. Quando começou a mexer no cabelo, lembro-me de ter tido o seguinte, profundo, elaborado pensamento: «Ok». Mas apenas tive a certeza absoluta quando a vi sacudir aquela belíssima juba negra, com um gesto desprendido e, por fim, olhar para mim com um batimento das pestanas. Fiz o mimo de levar uma chávena aos lábios, ela respondeu com a mímica mais característica possível, algo que tanto podia ser interpretado como "bem, não sei" ou como "onde?". Alguém lá atrás buzinou, o sinal estava aberto; arranquei, passei à frente do carro dela e fiz um sinal com o braço fora da janela: "follow me".

Em apenas três meses, ou coisa que o valha, esqueci completamente o episódio, a forma como a tinha conhecido, e acabámos por juntar os trapinhos. Foi esta a segunda e espero que última mulher a ter a suprema lata de me encornar. A coisa atingiu-me em cheio, confesso, e andei a "bater mal", muito mal, pessimamente, durante uns tempos; acho que foi bastante pior do que da primeira vez, porque depois da primeira qualquer macho idiota pensa que aquilo não vai tornar a acontecer com ele; lá diz o ditado, "macho encornado nunca mais marra embolado"(©). Erro, é claro. A questão não está em se ser encornado ou não, porque não há como não, tudo se resume a que a coisa se descubra ou não. Descobri, azar o meu. De mauzinho, por vingança, nunca mais lhe pronunciei o nome correctamente. Mas assumo, uma vez sem exemplo, de peito aberto: eu já fui encornado. Duas vezes. Twice. Caralhosmafodam. Vá lá ser burro no inferno.

Assim como se pode afiançar que nenhum homem reconhece possuir armações na testa, a não ser a coberto do mais cobarde anonimato, como é o caso, também se pode jurar - pelo que há de mais sagrado - que apenas existe traição quando e se esta se torna pública. Ou seja, em termos axiomáticos poder-se-ia dizer que o acto de encornar é eterno, universal e omnipresente, mas nunca por nunca pode ser conhecido por mais do que as duas pessoas envolvidas, e muito menos ainda poderá vir a ser omnisciente; por outras, mais simples e transparentes palavras, o encornanço existe, fatal e inexoravelmente, mas ao mesmo tempo não existe, pura e simplesmente. Mesmo quando toda a gente já está careca de saber que fulana empalita o marido com fulano (e fulano, e fulano, e ainda sicrano), tudo poderá continuar perfeitamente, por muitos e bons, na paz do Senhor, desde que o dito marido fique na mais completa ignorância. Bem, como há gostos para tudo, ele até há maduros que apreciam ser empalitados, parece que a alguns dá gozo e a outros não rala nada, nadinha, é uma forma de alguém lhes aviar a legítima e assim ela ficar um bocadinho menos chata.

Mas enfim, é importante que se realce e repita: não há problema algum com o encornanço em si, isso é inevitável e natural, a coisa apenas se torna lixada quando é descoberta. Dizia-se nos meus tempos de liceu que existem três espécies de "côrnos"(*): o corno manso, que não se chateia muito, o corno bravo, que fica fodidíssimo quando descobre, e o corno de churrasco - o gajo que diz "eu cá ponho as mãos no fogo pela minha mulher".

De resto, esta ancestral actividade apenas constitui perigo para a espécie masculina. Uma mulher não pode ser traída, nesta mesma acepção e quanto ao assunto de que aqui se fala, pela simples razão de que todo o peso social desaba apenas na cabeça, nos cornos para ser exacto, do homem em causa. Não existem "côrnas", digamos assim, e não é preciso dizer mais nada. A mulher poderá até fingir-se ofendida, no momento em que descobre que o marido anda enrolado com uma gaja qualquer, e esse amuo pode mesmo prolongar-se por uns dois ou três dias, mas passa depressa; aliás, a esposa que se diz "traída" pretende apenas guardar um trunfo na manga, para quando mais lhe convier: se um dia o palerminha a apanhar em flagrante, com um gajo qualquer, ora ali está um excelente argumento para lhe atirar às trombas (aos cornos, pois, por conseguinte).

Presumir que alguma mulher é "fiel", como qualquer rafeiro, ou mesmo que existem excepções à regra, revela uma personalidade embrutecida e masoquista - o que vem a ser o retrato a traço grosso do típico macho latino; ou seja, aquele gajo que faz questão de, declarando por sistema que "as mulheres são todas umas putas", exceptuar devotamente duas: sua maezinha e sua mulherzinha, nem mais nem menos; alguns até se referem à progenitora, tal é o horror que a realidade lhes provoca, como "a minha santa Mãe". Deve ser alguma coisa bíblica, há-de ter a ver com Nossa Senhora e com a Imaculada Concepção, não sei bem, quem sou eu, mas é uma manifestação de verdadeira Fé, disso ninguém pode duvidar. Como pode uma mulher ser fiel, se o Criador, nem de propósito, a dotou de variados e extremamente apetecíveis atributos, aos quais nenhum macho pode ficar indiferente? E que diabo de culpa terão as mesmas se já vêm de origem equipadas com "airbags" frontais, laterais e traseiros, além de tremenda e incrivelmente oleada máquina de foder, com botões de "switch-on" espalhados por toda a carroceria ?! Apenas botões para ligar, disparar o mecanismo, nenhum para desligar, não há "switch-off" em lado algum naquela fabulosa estrutura. Sim, que podem elas fazer quando a própria natureza as programou unicamente para a procriação, ou seja, para foder que nem umas desalmadas? É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que uma gaja boa evitar que muitos homens subam ao reino dos céus. Então se for podre de boa, é que está mesmo tudo fodido, em sentido literal. Ser um perfeito estafermo ajuda, no que à moral e aos bons costumes diz respeito, mas nem o coiro mais horripilante se aguenta a dieta de pepino e banana durante muito tempo.

Claro que existem as frígidas, (excelente petisco, posso garantir), as que não vão lá nem com escopro e martelo, e há também uma percentagem irrisória de sapatões, umas raridades tecnicamente do sexo feminino mas que apreciam exclusivamente gajas. Claro. É como haver por aí paneleiros a dar c'um pau, salvo seja, cada vez mais; que se fodam, umas e outros, não entram no pagode geral. Parece que até estes já inventaram uma forma de se traírem uns aos outros, e não é nada difícil adivinhar como, mas isso são contas de outro rosário e eu cá nem sei nada de paneleirices nem me interessa. Excepções e cartas fora do baralho existem sempre, em tudo e para tudo.

E não me custa nadinha admitir que há verdadeiras excepções, mulheres que nunca encornaram ninguém (como a minha santa Mãe, claro), onanistas militantes, duas ou três devotas enclausuradas, uns milhares no Afganistão e no Iraque, onde é fodidíssimo dar um pirafo, coitadinhas das muçulmanas, completamente nuas por debaixo da "burka" e os cabrões dos fundamentalistas ali à espreita, de pau em riste, não para lhes dar com ele mas para lhes dar com ele. E chega de excepções, que já enjoa.

Mas a regra, lá está, é fodida de todo. Gaja que é gaja, por mais "senhora" que se intitule ou seja de facto, cheira a sexo, sabe a sexo, sonha com sexo, pensa exclusivamente em sexo e em função do sexo; e quanto mais ciumenta, quanto mais furiosamente reservada, quanto mais acha e diz que as "outras" são todas uma cambada de galdérias, bom, aí calma, ainda pior; são as mais assanhadas. Não sei quem dizia que eu tenho a mania das progressões diametrais, mas enfim, nem acho nem isto tem nada a ver: o ciúme que uma mulher sente é directamente proporcional à culpa que realmente carrega, e inversamente proporcional à consciência que tem dessa culpa. Em suma, pessoal casado ou casadoiro, tomai lá um paradigma bestial: jovem, se a tua chavala é ciumenta com'ó caralho, se está sempre a mandar bocas foleiras porque tu galas as coxas daquela e fazes olhinhos àqueloutra, em vez de te rires e achares piadinha, ó parvalhão, põe-te mas é a pau - ou ela já te encornou, ou anda a encornar-te ou faz tenções de te encornar não tarda nada. Semper fidelis é nos comandos, ou nos fuzileiros, ou no caralho mais velho, mas não é de certeza lá em casa. Quem te julgas tu afinal, ó jovem? Pensas que és o maior, que a tens "segura", que ela, a "tua", nunca, mas nunca seria capaz de tal coisa? Pões a mão no fogo por ela, jovem? Pois. Bem me parecia. Vai contando carneiros, vá lá.

Bem sei eu, mas falta acrescentar e esclarecer, que a minha Encornação, a segunda, ocorreu mais ou menos por volta da septuagésima mulher no currículo(**). E que, entre a primeira, por volta dos 23 ou 24 anos, e a segunda, uns 16 ou 17 anos depois, devem ter decorrido aí umas cinquenta ou sessenta gajas; as outras (10? 15?) foram antes da primeira que me enchifrou. Neste doloroso, pungente, chatérrimo assunto, a execução de cálculos mentais ajuda muito; a contabilidade é um precioso auxiliar para o equilíbrio mental de toda a gente, e de mais a mais numa coisa tão fodida como assuntos de cama. Contar conas, para o gajo fodido dos cornos (que lhe puseram), é como contar carneiros para quem sofre de insónias: este acaba infalivelmente por se cansar e adormecer, aquele acaba fatalmente por cagar no assunto e esquecer.

É tudo uma questão algébrica, de número e de números: quanto mais, menos importante. E vice-versa. Não existe nada fora da ilusão, além da Matemática.




(**) - who the fuck is counting? Um gajo está entradote quando chega não aos quarenta mas às quarenta... e já não consegue contar mais, apenas calcular por médias anuais
(*) - não confundir "côrnos", plural de "corno", homem traído pela mulher, e "cornos", o plural de "corno", étimo que respeita aos apêndices ósseos que alguns (outros) animais apresentam na região frontal do focinho.

Consutório sentimental (1) - sexo anal
Consultório sentimental (2) - manter a chama
Consultório sentimental (3) - borborismo e outros ruídos

copyright do ditado impopular: © Dodo (http://001.blogspot.com)

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20/07/05

Rititi come

http://rititi.com/

Ena. Tou pasmado. Se fosse ".org", ou mesmo ".net", ou ".tv", ainda vá, vá lá, compreendia. Assim, parabéns. Bom proveito. Bruxo, mas tá bem. É o que dá ter amiguinhos(*) dos bons. Sabe-la toda, a miúda.

("o domínio", diz ela. eheheheh. Pois sim. Oh. Domina-me, filha, domina-me que me dás gozo. Ai.)

Passarito Imbejoso Pracaralho

P.S.: se não fosses parvinha, o que gostarias de ser? Um barco à vela? Escritora? Hospedeira de bordo? Inteligente?

(*) evidentemente, quero que se foda o link do homem; deve ser engano, de resto

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19/07/05

Terror menor


Esta rapariguinha de seus sete ou oito anos grita pela mãe, consecutivamente, infindavelmente. Grita. Guincha. Usa todos os músculos e articulações da garganta, e gesticula, e bate o pé. Ó mãeiiiiiiii!!! Mãeiiiiiiiii!!! Mãeiiiiiiiiiiiiii!!!
Uma gritadeira insuportável. A senhora sua mãe está a apenas dez passos, amenamente conversando, os cotovelos apoiados na janela, com alguém que se acha em sua viatura. Acha normal, a senhora, que o rebento grite a plenos pulmões; imaginará certamente que se trata de puro exercício vocal e peitoral, coisa de somenos importância, nada de mais, até é giro, desentopem-se-lhe as vias respiratórias, à criancinha, coitadinha. A criança não é malcriada, é "assim", é "hiperactiva".

Este rapazinho, quatro ou cinco anos, utiliza o chão de seu apartamento como pista de corridas. Não numa perspectiva automobilística mas apenas como "lane" de atletismo: corre da janela da sala até à janela do quarto do lado oposto, volta para trás até à janela da sala, toca-lhe e corre outra vez até à janela do quarto do lado oposto, e volta para trás, e uma, e duas, e três, e trinta, e trezentas vezes assim. É a chamada criança "hiperactiva", ou seja, esta nova subespécie humana que vai medrando em larga escala à qual tudo se permite, tudo se autoriza, e nada se proibe porque "é proibido proibir".

Aquele rapazinho, com o invejável curriculum de seis anos de experiência em infernizar a vida a toda a gente, não pára um segundo quieto com a sua preciosíssima bola de futebol. Tem jeito, o miúdo. Dá toques de cabeça, larga no pé e vai até três toques sem deixar cair. Mais tarde ou mais cedo, a bola lá vai parar a uma das mesas em redor; o puto chega-se e diz a um senhor de alguma idade: »Dá cá essa merda, caralho" - e regressa à sessão de toques virtuosos. Isto, é claro, em pleno restaurante. O senhor de idade, enfiado, arvora certo sorriso compreensivo, o mais adequado para a ocasião, o chamado sorriso número 423.

Os exemplos de terrorismo infantil, o menos citado dos terrorismos, são inúmeros e fastidiosos. Não é mais possível espetar com um valente bofardo em ganapo algum, hoje em dia. Acabou-se. Considera-se actualmente que um tabefe, uma chapada, um estalo, todas essas coisas que são meros sinónimos, constituem um pecado sem remissão, uma coisa execrável a merecer cadeia, de imediato. Às criancinhas confere-se um estatuto de absoluta e total impunidade, isto por cima da qualidade divina que lhes é inerente. A Criancinha (com letra maiúscula, note-se) é algo a que toda a gente deve prestar vassalagem, sem rebuço ou hesitação, sem pestanejar e sem sequer se pôr com ideias esquisitas - ou malévolas, o que vem a dar no mesmo - sobre o que fazer; não há nada a fazer com elas, com as criancinhas, a não ser vergar a mola e seguir obedecendo aos seus mais insignificantes caprichos.

Foi esta nova classe de monstros que a minha geração criou. A minha geração, a verdadeira geração rasca. A gentinha das amplas liberdades, do haxixe e das anfetaminas, das certezas para tudo menos para alguma coisa em concreto. Os paizinhos babosos de garotos nojentos, que foram transformados em garotos nojentos, paizinhos esses que transformam o puro terror que sentem dos filhos em coisas tão elevadas como "pedagogia" e "compreensão". Nunca por nunca, a nenhuma destas bestas de trintas e quarentas, ocorre a mais leve alternativa ao laxismo e à cobardia; apenas conhecem um regime educacional, e este é o da mais profunda e total bandalheira. No fundo, o papá típico actual possui uma única aspiração na vida: que os seus filhos cresçam e desapareçam. É por isso que, nas mais altas instâncias educativas, fervilham planos para aumentar o tempo de permanência das crianças nas escolas: é para os pais se verem livres deles, dos filhos; para terem algum sossego. É por isso que nenhum pai reage minimamente, mesmo que o seu filhinho querido torture um gato até à morte, que o meta no micro-ondas e ligue o botão: ele é lá capaz de uma coisa dessas! É por isso também que as crianças buscam tão desesperadamente o mais leve vestígio de autoridade, que procuram afincadamente alguém que lhes transmita um módico de conforto, alguma sensação de tranquilidade, um pouco de segurança.

O culto da juventude está de tal forma normalizado que já ninguém estranha que se abandonem dezenas de velhos, nos hospitais, todos os anos antes das férias. Vão a Santa Maria e vejam com os vossos próprios olhos. Os cães, conhecidos por "melhor amigo do homem" e brinquedo preferencial da raça infantil, são muito melhor alimentados, vestidos e tratados, do que o mais relevante (ou insignificante, pouco importa) septuagenário. Se não há um lugar sentado disponível, em qualquer transporte público, reparem em quem tem a primazia, a prioridade, o direito absoluto; se alguém oferece assento a uma grávida, logo virá um rapazola tomar posse, sem que ninguém se atreva a dizer seja o que for.

E talvez seja por isto estar a acontecer, talvez seja por o terrorismo infantil estar já tão entranhado nos nossos hábitos, que se presume ser a infância, esse curtíssimo período de vida pelo qual todos fatalmente passamos, não uma fase transitória mas algo de perene e definitivo: a criança é uma entidade secular autónoma, paralisada no tempo, permanente e absoluta. A criança é objecto de culto, embevecido e beato, sem qualquer espécie de medida ou de relativização, exactamente na medida da sua crescente raridade - como o ouro ou as pedras preciosas - e sem que sequer seja possível duvidar da sua intrínseca marca sagrada.

No entanto, as próprias crianças, cuja fragilidade obriga à construção de maiores e mais eficazes defesas, são as primeiras a desconfiar de que algo está podre, algures. Sabem que alguma coisa não bate certo. E conhecem perfeitamente quem lhes quer bem apenas porque sim, e aqueles outros que apenas fingem querer-lhes bem apenas porque lhes têm medo: a tal geração rasca atulhada de substâncias químicas, a maralha dos Woodstock e dos Live Aid.

Será necessário esperar pela próxima geração, por conseguinte. Os putos de hoje, na tradição milenar de "contestação" geracional, serão os primeiros a reinstituir a terapia da chapada na cara, nos seus próprios filhos. Afinal, serão eles os primeiros a concluir que não é um estalo que pode ser traumático; o que pode causar trauma é a falta de um estalo na altura certa.

E talvez, quem sabe, mesmo com todo o desprezo que nutrem pelos seus pais, pode ser que um dia os não abandonem em qualquer Santa Maria.

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17/07/05




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14/07/05

Vomitódromo


Ávião sem asa, fuguêra sem brasa
Sou eu ássim sem você
Futchiból sem bola. Piu-Piu sem Frájóla
Sou eu ássim sem você

Por qu'é qui tem qui sê ássim?
Si o meu dêsêjo naum tem fim
Eu tchi quero a tod' instantchi
Nem miu auto-falantchiz
Vão pudê fálá purr mim

Amô sem beijinho,
Buchecha sem Claudjinho
Sou eu ássim sem você
Circo sem pálháço, námoro sem ámásso
Sou eu ássim sem você
Tô lôca pra tchi vê chegá
Tô lôuca pra tchi tê nais mãuns
Deitá no teu ábraço, retomá u pedaço
Qui fauta no meu côráção

Eu não existo longi dji você
E a sôlidão é o meu pior castchigo
Eu conto as hóirais pra poder tchi vê
Mas o rélógio tá dji mau cumigo Porquê? Pooooooorquiê?

Neném sem chupeta, Romeu sem Julieta
Sou eu ássim sem você
Carro sem isstrada, queijo sem goiabada
Sou eu ássim sem você

Por qu'é qui tem qui sê ássim?
Si meu desêjo não tem fim
Eu tchi quero à todo instantchi
Nem miu auto-falantchiz
Vão pudê falá purr mim

Eu não existo longi dji você
E a solidão é o meu pior casstchigo
Eu conto as hóirais pra poder tchi vê
Mas o rélógio tá dji mau cumigo

Adriana Calcanhota

(Se um cristão prometer que vai aprender o que raio vem a ser "amasso" e quem diabo foi o Frajola do Piu-piu, será que este massacre acaba, nas rádios portuguesas? Será? Então, tá bem. Prometo. Lá terei de ver que merdas são aquelas. Buchecha e Claudjinho serão Bucha & Estica? E para quando um dicionário de Brasileiro-Português? Hem? Para quando? E um site de anedotas de brasucas? Hmmm?)

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Por uma Justiça pautada


Confunde-me sinceramente o facto de toda a gente desatar a rir, sempre que refiro este assunto. Não percebo onde é que está a piada. O caso é que, realmente, estamos com um sério problema de sobrelotação das nossas cadeias e outros estabelecimentos de reclusão, como as chamadas "casas de correcção" para menores. Há que arranjar alternativas, com urgência, por forma a evitar que os nossos políticos prossigam a sangria administrativa da população prisional; é que, à boa maneira portuguesa do mais expedito desenrascanço, verificando-se uma cada vez maior procura desse género de estabelecimentos e, por consequência, tornando-se verdadeiramente aflitiva a falta de camas disponíveis, a solução encontrada pelos nossos governantes consiste em desalojar prisioneiros às centenas - reduzindo-lhes as penas, amnistiando-os a trouxe-mouxe ou, mais simplesmente ainda, abstendo-se o poder judicial de sequer julgar - para não ter de enclausurar.

Esta política, de cariz estritamente liberal, em sentido literal, prosseguida desde os finais dos anos 70 do século passado, é evidentemente perigosa e de resultados desastrosos a curto prazo, o que é perfeitamente visível em qualquer lugar minimamente frequentado; basta qualquer um olhar em redor, numa praia, num café ou num restaurante, e avaliar por si próprio, mentalmente, a quantidade de gatunos, golpistas, bandidos e marginais em geral que ali estão, repimpadamente despachando suas pratadas de marisco e emborcando suas "tacinhas" de verde fresquinho. Não é possível que, nestes tempos de crise económica gravíssima, as esplanadas estejam - em qualquer dia da semana, útil ou inútil, e a qualquer hora matinal ou vespertina - sempre cheias, cheias a abarrotar de gente; como se pode compreender que todas as catedrais do consumo estejam sempre atestadas, os empregados numa lufa-lufa, quando se sabe de fontes seguríssimas que vai por aí uma crise do piorio?

Pois, é lógico, isto é tudo pessoal que foi despejado das cadeias. A maior parte dos comensais e compradores, em marisqueiras e em centros-comerciais, é constituída por ex-reclusos, gente que devia estar a cumprir pena mas não tem vaga. Não são apenas os governantes quem gasta neurónios à cata de soluções esvaziantes, mas também os nossos mais eminentes legistas, gabinetes, comissões e instituições especializadas, enfim, existem milhares de pessoas cuja função consiste em desenrascar maneiras de aliviar as cadeias de ocupantes. O problema é atacado em duas frentes, por assim dizer, ou em duas vertentes, uma a montante e outra a jusante: por um lado, promulgam-se amnistias e comutam-se e reduzem-se administrativamente todas as penas de prisão efectiva; por outro, evita-se a todo o custo levar alguém sequer a julgamento; atacando em ambas as frentes em simultâneo, e de uma penada, despenalizam-se crimes (aborto, drogas "leves", cheques sem cobertura) e, de forma insidiosa mas abrangente, instila-se na opinião pública uma cultura de irresponsabilidade e de inimputabilidade máximas, sob a capa de "tolerância" e de outras igualmente belas palavras.

A motivação subjacente carece em absoluto de qualquer fundamento humanitário, ou sequer democrático, não tendo rigorosamente nada a ver com o próprio conceito de justiça. A inimputabilidade juvenil, por exemplo, varia na razão directa e em função exclusiva das vagas existentes nos estabelecimentos antigamente designados por "reformatórios": quanto menos vagas, mais aumenta a idade necessária para que um cidadão seja criminalmente imputável. O mesmo vale, é claro, para todos os outros enquadramentos e estruturas penais, apenas se adaptando algumas questões de pormenor conforme as conveniências políticas do momento.

Enfim, tudo isto é velho e relho, além de muito conhecido. Nem vale a pena continuar malhando em ferro frio. A questão reside no seguinte: o que fazer? Quid? Em resumo: atonces e agora?

Bem, pronto. Cá estamos. Vá lá ver se ninguém se ri. A coisa é séria, repito. Lá vai.

Que se cagasse nossa Justiça para abolições, amnistiações, reduções e merdas que tais acabadas em ões, todas resultantes da mais evidente falta de testículos, em nossos governantes e legisladores, para de uma vez por todas acabar com o crime. Que se aplicassem penas de facto, aos criminosos, que se lhes fizesse pagar, que vingasse por fim a antiquíssima máxima: o crime não compensa. E seria então isto: substituir penas de prisão por penas de audição. Em vez de quatro anos de prisão efectiva, por crime de falsificação de documentos, por estupro, pelo raio que o parta, o criminoso levaria uma pena de quatro meses de audição: as obras completas de Clemente, por exemplo, ou de Dino Meira, não abusando.

Quatro meses, vinte e quatro horas por dia, um capacete hermeticamente fechado, na cabeça do meliante, toma lá, pimba pimba trolaró e tal, mãezinha, escrevi-te uma carta, ió ió ió lara-lari-larai. Dia e noite, vejamos. Haverá castigo maior? Seria substituir, com propriedade, a total ineficácia da privação da liberdade de movimento pela efectiva privação da liberdade de pensamento. O infeliz a quem fosse enfiado o capacete, com auscultadores incorporados e bateria de lítio, teria de aguentar 120 dias de verdadeira tortura, findos os quais, se entretanto não tivesse enlouquecido, poderia reflectir maduramente sobre o peso esmagador, sobre a pena insuportável que lhe cairia em cima no muito improvável caso de reincidir. Isto sim, seria política de reinserção social para os criminosos. Não custa nada prever os efeitos devastadores, a níveis sensorial e principalmente emocional, que tais condenações acarretariam. Gajo que fosse apanhado no gamanço, carteiristas e assim, era logo sumariamente julgado e posto a capacete integral, tendo que gramar doses maciças de Mónica Sintra ou Marco Paulo, por exemplo, e, nos casos mais graves, pedofilia, assassinato em série, gosto por explosivos, era logo de Pet Shop Boys para cima, umas selecções de Tom Jones, The Scorpions, El Chato, etc. Sem dó nem piedade. Auscultadores no máximo, aparelhagem HI-Fi incorporada no capacete (integral, pois claro), para que o condenado se alimentasse apenas por palhinha e não pudesse lavar nem o focinho nem o cabelo enquanto cumprisse pena. Supimpa. Os índices de criminalidade reduzir-se-iam de imediato a números insignificantes. E acabaria finalmente o problema da sobrelotação das cadeias. Mais de 90% da nossa população prisional é constituída por gentinha pequena, tesos com pedigree, pessoas que não roubaram o suficiente para pagar a advogados minimamente decentes, palermitas sem um módico de conhecimentos nas altas (ou médias, ou baixas) instâncias do Poder. É a mesma gente que se atulha de música pimba, quando em liberdade, e que restringe a liberdade e o espaço vital das pessoas decentes com essa mesma merda, sempre, sempre, sempre em altos berros. Seria portanto de elementar justiça dar-lhes a provar do próprio veneno, em função e na medida dos seus crimes: cada cheque careca, uma semana de Emanuel. Uma cena canalha, metendo putas e copos, uma facadazita matreira, avia-te lá com 15 dias, 360 horas de Zé Cabra.

Mas qual é a piada? Isto é altamente científico! Estão mais do que provados os efeitos nefastos, para a saúde mental do ser-humano, deste sub-género de ruído! Parem lá de rir, caralhosmafodam! Experimentem e vão ver. Uma hora, uma horita só. Ponham lá uns auscultadores com aquelas merdas no máximo. A ver.

Ora foda-se. Sério. Se continuam a rir já não digo mais nada. Pronto. Acabou-se. Agora zanguei-me. Bardamerda.

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se calhar sem métrica


Vi-te há pouco na rua, ainda agora, foi só um instante,
um relance, um segundo, nem sequer me reconheceste!
Como se não houvesse passado, nunca, nunca, jamais;
aquelas palavras não foram ditas, não, nem nunca mais.

Pareceu-me que me viste, ainda assim, estarei errado?
Houve ali, acho, um momento em que o teu olhar refulgiu,
ou foi só impressão minha, erro meu, estou enganado;
se calhar não foi nada, se calhar o teu olhar não me viu.

Se calhar, nem eu nem tu lá estivemos agora, foi engano;
por mero acaso nos cruzamos, numa rua assim, casual,
beco sem saída desembocando num estúpido desagrado.

Se calhar a ilusão maior foi antes, esse erro fatal, insano,
não agora que nos cruzamos por acaso, sem nenhum mal,
sem qualquer ferida, assim tão longe de qualquer passado.

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12/07/05

O homem é o melhor amigo do cão

interlúdio calminho

A segunda espécie mais bem sucedida, a seguir à espécie humana e se não se contar com os ratos, é o cão. Depois destas duas ou três espécies, entre o cão e o rato, aparece o comunista: esse filho-da-puta nojento, execrável, essa coisinha abjecta com pernas à qual, Deus me perdoe, apenas me ocorreria fazer uma coisa, se pudesse: trucidá-los, a esses filhos-da-puta, a esses miseráveis sem um pingo de humanidade, a essa gentalha asquerosa, a essa turba de sacerdotes da bondade a granel. Odeio os comunistas. Esses assassinos encapotados. Odeio comunistas. Esses facínoras, inqualificáveis mas ainda assim facínoras. Odeio esses filhos-da-puta. Se pudesse, liquidava-os um a um, antes de que eles me fizessem democraticamente o mesmo. Odeio comunistas. Não se me dava nada de fodê-los todos a tiro, um por um ou em carreirinha, a começar na abjecta Odete Santos e a acabar no repugnante Jerónimo Não Sei Das Quantas..
Odeio os comunistas. Odeio comunistas. Odeio esses filhos-da-puta. Odeio comunistas. Odeio os comunistas. Odeio comunistas. Odeio esses filhos-da-puta. Odeio comunistas. Odeio os comunistas. Odeio comunistas. Odeio esses filhos-da-puta. Odeio comunistas.
Venham cá agarrar-me, seus filhos-da-puta. Estou à vossa espera. Bem sei que o meu entrecosto vos agradaria, assim suculento e temperado com ideias fassssssssssistas. Que vos faça bom proveito, seus abutres, seus filhos-da-puta, cambada de assassinos.
Regalai-vos com a vossa bondosa e altruística necrofilia, a puta da vossa especialidade.

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11/07/05

Diana Andringa Lights (low tar)

O Governo adverte de que o uso de praia pode prejudicar a saúde

Interessante "investigação jornalística" da insigne candidata comunista à Câmara de Algures de Baixo. Vale a pena perder, em sentido literal, 19 minutos e 51 segundos de vida útil visualizando a película.

Todos os meus amigos e conhecidos racicamente minoritários, por assim dizer de aspecto mais bronzeado, pretos de diversas etnias, mulatos e indianos, partilham da mesma opinião a respeito do tal arrastão que a Diana diz que não existiu: era correr esses cabrões à paulada; sejam 40 ou 400, o que eles fizeram vai afectar principalmente aqueles que não tiveram nada a ver com o assunto.

Comunistas e trogloditas que se dizem de extrema-direita partilham de muitos pontos de vista, e a questão rácica é um deles: para os que sofrem da afecção cerebral geralmente designada por "marxismo", nenhum "negro" é culpado de coisa alguma, precisamente porque é "negro", coitadinho; os facínoras das claques de futebol e outros marginais que se intitulam de "nazis", "fascistas" ou "cabeças rapadas", acham que todos os pretos são culpados de tudo e mais alguma coisa, precisamente porque são pretos, os cabrões. Escusado será dizer que merecem tanto crédito uma como outra das "opiniões"; os "skin heads" deveriam ser rebaptizados como "empty heads" e, quanto ao maralhal comunistóide, não devo ser o único a julgar que deveriam ser internados em instituições especializadas, a expensas do Estado e com medicação grátis e à discrição.

Esta tal "investigação" da Diana é, de facto, mais do que um documentário, um verdadeiro documento. Um monumento àquilo a que os comunistas chamam "a verdade a que temos direito". Entre outras interessantes perspectivas, destaca-se aquela que constitui a verdadeira raíz do problema: foram 30 ou 40, não 300 ou 400, os pretos que "praticaram actos ilícitos" na praia de Carcavelos, em 10 de Junho. Ora, se foram 30 ou 40 e não 300 ou 400, presume-se que não houve, afinal, "arrastão" nenhum; isso são bocas da reacção, intoxicação da opinião pública e outras maldades que os "fasssssssssistas" habituais costumam utilizar para denegrir aquela gente, os "desfavorecidos" de bronze mais intenso. Aliás, tanto não houve "arrastão" quanto o que se passou foi apenas a prática de "actos ilícitos". Clarinho como água. Se tivessem sido realmente 300 ou 400, paciência, a esquerdalhada lá teria de engolir o sapo e admitir que sim, realmente, tinha havido "arrastão"; assim, apenas e só 30 ou 40, nada feito, népia, qual arrastão qual quê, aquilo não foi nada, nadica, o que é isso de 30 ou 40 "jovens" a gamar umas coisitas? Pfff!

De resto, a História comprova à saciedade - salvas as devidas distâncias - como vingaram sistematicamente as teses marxistas sobre a violência em geral e sobre o crime em particular: Estaline, o paizinho dos povos, não foi responsável pelo genocídio de 30 milhões de seres-humanos; como não foram setenta mas apenas três milhões, não houve genocídio algum; foi apenas um ligeiro "desvio ideológico"; Pol-Pot, esse benemérito Khmer Vermelho, não mandou exterminar 1.400.000 dos seus compatriotas; não, nada disso, foram apenas 140.000, não foi extermínio mas uma simples purga, uma purgazita insignificante. Esta lógica decimal estende-se, de resto, a qualquer dos bandidos comunistas que governam ou alguma vez governaram no mundo, de Angola a Cuba, passando pelo Vietname e pela China: cada crime comunista deixa de o ser quando reduzido a 10%, a verdadeira e única medida que a ideologia reconhece.

Quando se tortura alguém durante dias a fio, em qualquer dos paraísos socialistas, a tortura facilmente passa a "persuasão activa" desde que se diga que foram apenas algumas horas e que não houve nem choques eléctricos nem tortura do sono mas apenas um "diálogo franco e aberto".

Se algum "responsável" político se passa dos carretos e se excede um pedacito, como foi o caso de Lavrenti Beria (NKVD/KGB) ou de Erich Mielke (Stasi), apagam-se simplesmente da História, fazem-se desaparecer, apagam-se das fotografias, rasuram-se nos jornais e nos livros. Logo, como nunca existiram, os seus crimes também não. Ora, como esta cosmética histórica é efectuada em apenas 10% dos líderes e responsáveis comunistas, não se trata de "reescrever a História" mas de "reenquadramento histórico", apenas.

Com esta escola, com esta formação científica e algébrica, alumiada pelo brilho refulgente dos ideólogos comunistas, não admira que Diana Andringa seja capaz de tão brilhante prestidigitação factual. Mais coisa menos coisa, mais 10% menos 10%, resulta portanto que não houve "arrastão", que não havia negros na praia e que não aconteceu, em resumo, absolutamente porra nenhuma.

Também, o que ganharia ela com a instilação de tão revolucionária tese? Está-se mesmo a ver que nada, nada de nada, a senhora deu-se à maçada de encadear um chorrilho de mentiras apenas pelo seu intrínseco amor à justiça, à verdade, à igualdade, etc. O facto de ser candidata a tremendo tacho na Câmara da Amadora, bem, isso é pura coincidência. Não tem nada a ver. Parece que não eram da Amadora, os pretos que não estiveram na praia de Carcavelos, os tais que não roubaram nem agrediram nem insultaram ninguém.

Bom. Talvez 10%. Uns 3 ou 4, no máximo. Não conta, portanto. Resta-lhe imaculada a reputação, à Diana, e a percentagem. Porque o socialismo ganha à comissão.

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10/07/05

Consultório sentimental (3)

A intimidade intimida
(...)
Verdadeiramente, devo confessar que tenho perfeito horror à instituição casamento. Não me imagino a ter de partilhar com a mesma pessoa, com uma só pessoa, todos os dias, para o resto da minha vida, absolutamente tudo, desde as tarefas domésticas até à escova-de-dentes, passando pelos lençóis e cobertores, ou seja, a cama. Acho hoje, como sempre achei, que a simples ideia de "casar" é só por si suficientemente repugnante para sequer ser tomada como hipótese. (...) Em suma, parece-me que o casamento deveria ser encarado como um sacrifício extremo e não como motivo para qualquer espécie de regozijo e muito menos de festejo; parece-me aliás já ter lido qualquer coisa mais ou menos deste teor, no seu blog; se bem me lembro, dizia o D que o casamento apenas se justifica se e quando surge o primeiro filho; não poderia estar mais de acordo, e mesmo assim, como dizem os brasileiros, olhe lá! Se fosse possível cada um ter a sua casa, adoraria ter esse filho (e depois outro e outro, quem sabe), mas eu no meu canto e ele no dele, eu com a minha escova-de-dentes e com o meu sossego, e ele com a dele e o dele, respectivamente.
(...)
Talvez seja, de facto, aquilo que toda a gente me diz de há uns anos para cá: "isso é alguma trauma que tu tens". Já se sabe, não há nada como uma explicação fácil e transparente destas, sempre a mesma; quando não há uma explicação óbvia para determinado comportamento, lá vem a rapsódia do "trauma". Não sou eu quem tem um "trauma contra" o casamento, é o casamento que é traumático por definição. Aliás, não entendo o conceito de "trauma contra". Ou é trauma ou não é trauma. Se é trauma, é "contra" alguma coisa. Mas enfim. Os mesmos e as mesmas que me "dão" tão excelentes conselhos, as mesmas pessoas que se acham no direito de debitar uns palpites sobre o "meu" trauma são as mesmas que já se casaram e separaram uma, duas, três vezes. Quer dizer: não têm nenhum "trauma contra" o casamento, mas quem se divorcia são eles e elas, não eu. E depois, os motivos são sempre os mesmos, e são precisamente aqueles que enformam, pelos vistos o tal trauma que é apenas meu: estão "fartos", eles, "decepcionadas", elas; que já não suportam os hábitos do outro, as manias e as idiossincrasias; que não aguentam nem mais bebedeiras (elas deles) nem mais birrinhas (eles delas); e que chega de peúgas pelo chão e garrafas vazias por todo o lado; e que ele é um brutamontes, javardo, cabrão e outras coisas piores, cujo maior divertimento é largar uns traques em vale-de-lençóis ou fazer concursos de arrotos com os amigos, enquanto jogam com as malditas setinhas e se enfrascam até de madrugada.
(...)
A pressão social é esmagadora, em razão diametral: quanto mais uma mulher avança na idade, mais se sente pressionada a casar e ter filhos ou, pelo menos, casar; quanto mais velha, mais esquisito se torna que esteja ainda "solteira e boa rapariga", até porque já não é rapariga nenhuma. O rolo compressor da chamada normalidade passa, cada vez mais, para trás e para diante, uma e outra vez, quanto mais arisca (enrugada) ou avessa uma pessoa demonstra ser em relação aos padrões comportamentais considerados como "normais".
(...)
Desisto. Rendo-me. O meu casamento está marcado para o próximo dia 3 de Setembro. "Ando" como o meu futuro marido há quase dez anos. Tirando um ou outro, muito esporádico, "amigo colorido" (e só duas ou três amigas), sempre lhe fui fiel. Mas eram os pais dele e os meus, a mais tios, avós e sobrinhos, e os amigos e conhecidos de ambos, toda a gente, e casem e casem e casem lá, caramba. Ok, pronto, tá bem, não me chateiem mais. Passei dez anos com este, e não sei quantos com não sei quantos antes dele, e mesmo o estatuto de "namorado" eu recusei sistematicamente. Não gosto de estatutos. Estatutos têm os clubes recreativos. Não gosto da mania que todos os homens têm de não baixar o tampo da sanita. Não gosto de acordar com gente ao meu lado. Não gosto da maneira como este se ri, geralmente a despropósito. Detesto os ruídos que ele faz com a barriga. Mas tem qualidades. Mal por mal, antes este, que já conheço, do que outro qualquer - sem saber o que lá viria.
(...)



Cara amiga,

Em primeiro lugar deixe-me que lhe diga o seguinte: é um verdadeiro prazer ter a oportunidade de trocar algumas frases com alguém cujo Português é tão agradável, escorreito, impecável. Uma das minhas maiores dificuldades, quando respondo aqui no consultório, é precisamente fintar a azia que atavicamente me provoca a leitura de qualquer coisa com erros. No caso da sua mensagem, foi uma agradabilíssima surpresa, li-a e reli-a com grande prazer. Nota-se que se trata de pessoa com formação, e não apenas académica. Desde já peço me perdoe se, porventura, escolhi mal aquilo que me pareceu ser o assunto central mas, porque me pede absoluto anonimato, apenas transcrevi os excertos mais significativos e que menos a identificam, ou que menos expõem determinados aspectos da sua intimidade.

É que esse assunto central, ao que me parece, repito, foca algo que muito raramente aparece referido em qualquer literatura atinente - entendendo-se aqui por "literatura" todo o acervo scripto, audio e video versando o tema, desde a chamada imprensa cor-de-rosa até ao mais eminente sexólogo, sociólogo ou psicólogo da nossa e de outras praças. A designação técnica desse assunto é, por conseguinte, borborigmo.

O borborigmo pode até funcionar como símbolo de todas as pequenas, microscópicas, aparentemente insignificantes coisas que podem liquidar um casamento, um namoro ou, como hoje é fino dizer-se, "uma relação": mais conhecido como borborismo, este fenómeno estritamente fisiológico não consta nunca de qualquer romance, novela ou simples história, sejam estes na forma escrita ou na forma vivida. Se, por exemplo, Romeu (ou Julieta, assim como assim) sofresse de borborismo, ou se o próprio Shakespeare o tivesse ao menos referido, nunca teria sequer sido publicado aquele paradigma do romance amoroso. Mas Romeu e Julieta será até um mau exemplo, porque nunca os protagonistas chegaram a passar umas horitas juntos, quanto mais uns anos ou uma vida inteira.

Mas é fácil imaginar aquilo que acontece, entre qualquer par de apaixonados, quando o fenómeno irrompe... em sentido literal. Uma das finalidades práticas da chamada "paixão" ou do chamado "amor", ao menos entre homem e mulher e pelo menos segundo Desmond Morris, é precisamente - entre outras coisas - a obstaculização da repugnância física; ou seja, em suma, as pessoas apaixonam-se para que, inevitavelmente e mais tarde, seja possível evitar o nojo que a um provocam as manifestações fisiológicas do outro (urinar, defecar, suar, vomitar, eructar e mesmo, noutra acepção, falar, rir, comer, andar, etc.); quanto maior for a "paixão" inicial, maior a tolerância futura à exibição da fisiologia primordial do ser "amado", sendo que esta exibição é profundamente rejeitada em todos os outros seres.

Ora, é realmente difícil que uma mulher (ou um homem, já agora) se não "desapaixone" quando se apercebe, pela primeira vez, dos resultados e das consequências audíveis (e odoríferas) do borborismo. Fatalmente, este fenómeno descamba num outro (igualmente referido na sua mensagem), que se designa por meteorismo e que pode ter diversos graus de intensidade: há o gajo (ou gaja) que se bufa, suave e quase imperceptivelmente, e há quem atroe verdadeiramente os ares com farpolas terríveis, peidos esmagadores, de três em pipa, que até as paredes tremem: tchrraaac ou brrrruuuummm. Este tipo de actividade lúdica é conhecido, entre os mais dotados, por "rasgadela" (aproveitando a primeira onomatopeia) ou por "estrondar" (a partir da segunda). E depois, por regra, vem o pivete. Existem verdadeiros especialistas no assunto, capazes de largar terríveis, insuportáveis bufas, mal cheirosas até ao absurdo, verdadeiras armas secretas de desmoralização maciça. Basta entrar num qualquer transporte público para aquilatar da violência da coisa. Existe mesmo a correr um abaixo-assinado, em Lisboa, iniciativa de um grupo de cidadãos mais conscientes e amigos do ambiente, solicitando se acabe com as janelas seladas nos autocarros e nos comboios da capital; é que, alegam, dantes era mais fácil, abriam-se as janelas e já se podia respirar mais ou menos; agora, com estas modernices do ar-condicionado, os passageiros levam com as bufas e com os traques uns dos outros e não há como escapar, porque nenhuma janela abre. Talvez por isso, alguns dos acidentes (em especial no Metro de Lisboa) devem-se ao facto de alguém se ter peidado dentro da carruagem e, tendo-se espalhado o pânico, uma pessoa mais atrapalhada acaba por puxar o freio automático.

É, como vê, assunto sério. Demasiadamente sério para tamanho e sistemático escamoteamento, não apenas na imprensa, TV e Rádio, como na mais simples conversa de café ou em simples roda de amigos. Parece tratar-se de exclusivo, de tema reservado apenas aos elementos do casal. E por isso mesmo lhe reafirmo a minha compreensão e simpatia para com o seu caso.

Cara amiga, se realmente o seu futuro marido tem esse problema (como o refere por duas vezes, parece-me tratar-se de meteorismo grave), talvez fosse boa ideia reflectir mais umas cinquenta vezes antes de dar tão drástico passo. Que se lixe a pressão social, neste caso. Mande mas é foder os seus amigos e familiares, mai-los seus palpites. Em última análise, não são eles quem vai ter de aguentar o cheirete. Pense bem. Pense mais cinquenta vezes. O que fará quando uma bela noite acordar, estremunhada, pensando que está a haver um terramoto e, afinal, constatar que era apenas o seu mais-que-tudo a peidar-se alarve e energicamente? Meteorismo, cara amiga, não é brincadeira nenhuma e não tem absolutamente nada a ver com romantismo; nem sequer tem a ver com meteoros ou outros corpos celestes, como estrelas-cadentes ou coisa que o valha. Borborismo é barulheira intestinal, meteorismo é traques. Tem aí uma boa chatice para se entreter.

Enfim, não há-de ser nada. Já pensou cinquenta vezes? E depois outras cinquenta? Então pense mais cinquenta.

Mande sempre (salvo seja).




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A passeadeira

A variante humana conhecida no estrangeiro e arredores como "portuguesito" distingue-se das restantes espécies pela relação de amizade que mantém com as passadeiras para peões. A passadeira é, para o portuguesito, um terreno sagrado e exclusivo; pode não ter mais nada, e geralmente não tem, mas a passadeira é dele e só dele, do portuguesito.

Se vai a correr para apanhar um autocarro, pára assim que vê aquela entremeada de rectângulos pretos e rectângulos brancos; e atravessa devagarinho, pé-ante-pé, quando não ao pé-coxinho ou mesmo jogando "à macaca" com os rectângulos; volta-se para trás quando está a meio, observa a paisagem de prédios e semáforos, mete conversa com o passeador do lado, conheça-o ou não o conheça de lado nenhum, coça o queixo, pensativo, desfaz-se calmamente de sua patriótica escarretazinha; posto o primeiro pezinho na primeira risca, pronto, acabou-se, os cabrões dos automóveis que parem, agora já cá estou, desenrasquem-se, trava aí, ó.

Curioso espécime de proprietário virtual, o peão-na-passadeira é um animal dotado de todos os poderes, terráqueos e divinos, baseados numa premissa extremamente sólida, tão sólida como o chão listado que pisa e que é inexoravelmente seu: "se ele bater, lixa-se, porque eu cá estou na passadeira". Para o peão-na-passadeira, o facto muito provável de "ele", o outro, o condutor, o automóvel, bater e mandá-lo de pernas para o ar, para o hospital ou mesmo para o inferno, bem, isso logo se vê e não interessa para nada: o que interessa é que o peão está na (sua) passadeira e se o outro bater a culpa é dele, ora, ora, tá-se mesmo a ver.

Não está ainda estudado, este fenómeno. Em Portugal, as passadeiras para peões não se destinam a facilitar o atravessamento pedonal das rodovias; são antes a coutada individual do peão, essa raça de existência transitória que vigora apenas quando o automobilista deixa, por momentos, de o ser. Em Portugal, um país onde absolutamente nada se respeita, a passadeira detém o exclusivo da intocabilidade; a passadeira é a nossa vaca-sagrada, tendo como ela umas manchas brancas e pretas, mas sendo também bastante mais achatada do que uma vaca propriamente dita; tirando isso, é igual.

Há aquele fulano que acaba de estacionar o popó em cima do passeio. Apressa-se a tomar posse da passadeira mais próxima. Assim que lhe põe um pé em cima, endireita os ombros e inicia a travessia, a impar e imponente, e assim vai, calma e sossegadamente, passeando entre dois passeios, senhor do seu destino de 10 metros ou menos. Se antes vinha apressado, agora estaca, vê a passadeira e dá-lhe uma coisa: sente-se em casa, dardeja sorrisos de superioridade, desdenha dos sacanas dos automóveis que obrigou a fazer parar; se algum destes se atrever a buzinar, será imediatamente fulminado com tremendo olhar de reprovação e, vá, um manguito, um insulto, qualquer coisa vale. Ao gajo em cima da passadeira tudo é permitido, aos outros nada.

Há aquela senhora que se lembra de repente, a meio da travessia, de limpar o cocó do sapato; os automóveis respeitosamente parados, em ambos os sentidos de trânsito, aguardam pacientemente que a senhora conclua a tarefa e que, satisfeita com os resultados, se digne completar a caminhada até ao passeio oposto. É que, obviamente, esse tipo de actividades higiénicas, limpar a merda dos sapatos e assim, é muito mais agradável quando efectuado a meio de uma avenida, por exemplo.

Há o jovem, cuja profissão é e será sempre isso mesmo, que resolve medir a distância total da passadeira, mas em pés, ou seja, colocando o calcanhar do esquerdo em contacto com a biqueira do direito (e vai um), depois o calcanhar do direito com a biqueira do esquerdo (e vão dois), e assim por diante, até chegar ao lancil do outro lado; vinte e três, são 23 pés, contei-os eu, mas depende do tamanho do pé de cada um e da largura da estrada, olha que interessante.

Há o "jovem menos jovem" que atravessa com ar de desafio, com ar de "aqui quem manda sou eu", com ar de quem sente falta de ar, tal é o nojo que sente e o desprezo a que vota os desgraçados que pararam para ele passar. Empina sua barriguita de sete meses, cofia o bigodinho sensacional, pára e solta seus gases, diz que sim com a cabeça, ameaçando sabe-se lá bem o quê. E diz "bem, bem, bem, bem", como se soubesse de fonte segura o que está certo e o que está errado. Enquanto passeia na passadeira, o homenzinho está nas suas sete quintas, que nunca teve, e é senhor de algo, coisa que só ali mesmo.

Há o grupo de tias, acabadinhas de ir à missa, todas pimponas; chega a primeira à beirinha da zebra e reserva logo lugar para as outras - assim que põe o pé, vira costas ao trânsito (já se sabe, se baterem, a culpa é "deles") e espera que passe a última; e lá atravessam, muito devagarinho, tagarelando alegremente sobre as incidências da liturgia e sobre outros assuntos. Uma delas acaba invariavelmente por entalar o salto afiado na calçada, de modo que todas vêm ajudar à libertação, por entre risinhos excitados. Entretanto, o engarrafamento já chega às portas da vila.

Há o grupinho de pessoas de cor (não se pode dizer pretos) que, habituadíssimos à tradição africana do respeitinho nas passadeiras, atravessam lentamente seus andrajos típicos, bamboleando os respectivos flancos direitos, a mão direita em sinal esotérico; na tradição oliveiriana, passam em câmera lenta e a preto e branco mostram a dentuça aos brancos enfiados em suas latas. Muito gostam eles destas coisas de branco, mano, a gente chega lá e eles param, até derrapam, hriiiii, yá, podes crer, é uma cena fixe.

E há também que não confundir os tipos de passadeira: as mais antigas, como se dizia nos meus tempos de escola, apenas serviam para indivíduos do sexo masculino e que usassem chapéu; além disso, era obrigatório atravessar na posição que a figura indicava, pernas e braços flectidos a 90 graus; caso contrário, podia-se atropelar à vontade. Mais recentemente, apareceram uns sinais mais de acordo com os novos tempos, estilizados, uma sombra que não se sabe se é de gajo se de gaja, europeu ou asiático; sinal dos tempos, passe a redundância, coisa da globalização. Nos anos 70 (ou 80?), os Monty Python descreveram o que se passava no então "apartheid" da África-do-Sul: os pretos atravessavam nas passadeiras utilizando exclusivamente as riscas pretas, e os brancos saltitavam apenas nas riscas brancas. Bons tempos.

Agora é tudo ao molho e fé em Deus. Já ninguém contabiliza os mortos e feridos causados pelas passadeiras, porque isso não interessa; cada imbecil que passeia numa passadeira (portanto, que passeia na passeadeira) provoca muito mais acidentes, choques em cadeia, chapa amolgada, até mais mortos e feridos, do que alguma vez se imaginou pudesse acontecer nas próprias passadeiras. A veneração à passadeira é mais uma forma de esconder o essencial; é fingir que se faz alguma coisa quando evidentemente não se faz coisa alguma. Por alguma razão ninguém utiliza as passagens aéreas para peões, havendo nas proximidades uma passadeira de nível; não é por acaso que estas passagens aéreas teimam em cair de podres. Isso acontece porque, lá em cima, não se obriga ninguém a parar; não existe poder para arrogar nem ninguém para esmagar com esse poder. E principalmente, numa passagem elevada "eles" não podem bater e, por conseguinte, a culpa nunca poderá ser "deles". É uma chatice.

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07/07/05

Alô, Embratel!




O que diz na linha 6 é: quero morrer cianeto.




Alguém procurou isto na Google, hoje, às 19:55 e, é claro, encontrou. E logo aqui, no Godot, em primeiríssimo lugar. Dispensava bem a "honra". Mas isso agora não interessa.




Cara amiga (ou caro amigo),

Parece-me que já nos conhecemos há muito tempo, e sinceramente espero que volte a esta página, um destes dias. Teria muito gosto nisso. Aliás, nem pode imaginar como ficaria satisfeito se recebesse uma mensagem sua! Basta um "olá", ou coisa do género. Mas também, se quiser, escreva mais, escreva o que quiser, escreva páginas e páginas, o e-mail mais comprido da História, pode até ser um chorrilho de insultos, caso lhe dê na gana; se não gostou do que leu aqui, ficaria muito contente se se desse ao trabalho de alinhavar umas coisas, por mais violentas que sejam, não me importaria nada que me desse uma valente cabazada, de palermóide ou mentecapto para baixo. Faço por merecer, e isso é bom, de vez em quando, lava a alma, faz-nos ver o que realmente é importante e aquilo que não vale nada. A sério. Esta é uma daquelas ocasiões em que vale; dou-lhe a minha palavra de honra de que lhe responderei de imediato. Se não lhe apetecer escrever, podemos conversar através de qualquer "chatroom". Enfim, o que é importante é que me contacte seja como for, ok? Fico à espera, hem?

Um grande abraço deste lado do Atlântico, do seu amigo

Dodo

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06/07/05

Deixem jogar os Mantorras!

Deputada Ana Drago citou relatório policial
Bloco de Esquerda diz que "arrastão" foi "fuga de jovens de carga policial"

24.06.2005 - 11h52 Nuno Sá Lourenço

O Bloco de Esquerda (BE) fez ontem a Assembleia da República regressar ao tema do "arrastão" da praia de Carcavelos para criticar a "manipulação, inexactidão no tratamento" noticioso do acontecimento.

Baseando-se no relatório do Comando da Polícia de Segurança Pública de Lisboa e no testemunho de um filho de um membro da Assembleia Municipal de Lisboa, que obrigavam a uma "análise à luz de novas informações", a deputada Ana Drago afirmou que "não houve "arrastão", houve talvez furtos, mas o que aconteceu foi uma fuga de jovens de uma carga policial indiscriminada".

Antes disso tinha já citado o relatório policial para sublinhar que o número de assaltantes era bem mais escasso: "De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícitos. Muitos jovens que apareceram nas imagens televisivas e fotográficas a correr na praia naquele dia não eram assaltantes, mas tão-só jovens que fugiam com os seus próprios haveres."
A deputada responsabilizou os media por "ter dificuldade em acertar agulhas com o dito mundo real", acusando-os de recriar esse mesmo mundo. "A análise da fabricação do alarmismo é sempre importante. Muitos jornalistas, comentadores e cidadãos estão hoje a fazê-la", afirmou.

Os ataques não se limitaram à cobertura noticiosa do acontecimento. Ana Drago apontou ainda o dedo ao à "solução CDS", acusando aquele partido de ter relacionado criminalidade e imigração. "Correr os jovens dos guetos à bastonada para que fiquem quietos nos seus bairros e não desçam à cidade não resulta", sustentou.

A alternativa são "políticas de integração social e integração urbana ambiciosa" para combater o "Rio de Janeiro que vai crescendo em torno de Lisboa". Admitiu ainda que "deixar perdurar o sentimento de insegurança é insustentável", até porque quem o sofre são principalmente "os pobres e os remediados".

A reacção do líder parlamentar do CDS, Nuno Melo, foi a de acusar Ana Drago de mentiras. "Não houve um único momento em que tivesse ligado o crime à imigração", afirmou antes de rematar: "Continue a senhora deputada com os criminosos."

Ana Drago respondeu acusando o CDS de jogar com o "pânico social" e de se encontrar desfasado da realidade, chegando ao ponto de nem sequer ter o respeito dos agentes policiais. Usou como exemplo a manifestação de polícias dois dias antes onde os deputados do BE tinham sido aplaudidos e "o senhor deputado Nuno Magalhães [ex-secretário de Estado da Administração Interna] foi assobiado."

Público





Queixa na procuradoria

O Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas apresentou ontem uma queixa na Procuradoria-Geral da República. O objectivo é, segundo o padre Vaz Pinto, “saber como é possível passar na televisão filmagens que são secretas e não pertencem à Comunicação Social, mas à CP e à Polícia" (aparelhos de vigilância dos comboios).

Foram também pedidos ao Comando-Geral da PSP, para que sejam prestados esclarecimentos sobre o ‘arrastão’, e à Alta Autoridade para a Comunicação Social. Vaz Pinto considera que é preciso assegurar “a definição de um código de conduta para o tratamento da informação sobre a imigração e minorias étnicas em notícias que possam ser altamente lesivas da honra e da tranquilidade das pessoas”. Ao que o CM apurou, José Falcão, do SOS Racismo, votou contra o comunicado aprovado.

Vaz Pinto abandona o cargo em Julho, por “razões pessoais”.

António Sérgio Azenha
(foto DN)


Correio da Manhã



amplas liberdades

Uma matilha de 500 "excluídos" de raça negra "libertou" anteontem a sua "revolta" sob as cabeças dos incautos banhistas, obviamente notórios racistas, que por acaso se encontravam na praia de Carcavelos; a dita "revolta", ao que parece, foi espoletada pelo facto de não serem aqueles indivíduos, regra geral, possuidores de telemóveis Nokia e de "ténes" Nike, pelo menos em quantidade suficiente, entre outros imprescindíveis bens, como dinheiro em contado, relógios, bolas de futebol, óculos de sol, etc. Fontes geralmente bem informadas e que, ao contrário da maioria dos comentadores e jornalistas da nossa praça, estiveram de facto no local, à altura dos acontecimentos, relatam que aqueles "jovens" não apenas roubavam e agrediam quem se lhes atravessava no caminho, como se entretinham a provocar todas as pessoas de tez clara, insultando-as, cuspindo nelas e atirando-lhes com baldes de lixo para cima.

A comunicação social portuguesa, dominada por comunistóides e esquerdistas indiferenciados, laureou sua pevide informativa com imagens obviamente truncadas e evidentemente censuradas, tentando - como é da praxe - fazer passar a ideia de que se tratou de mero incidente, coisa de somenos importância, perpretada por "jovens", apenas "jovens", coitados, e o que é que isso tem, é a "irreverência" própria da juventude, que se há-de fazer, eles são mesmo assim, deixá-los lá, e tal e tal. E, de caminho, lá foram os mesmo profissionais dos "media" tentando farejar o mais leve indício de "violência policial" exercida sobre os "pobres" elementos do imenso gang de bandalhos. Parece que certa senhora terá levado uma bordoada inadvertida de um agente, e foi sobre isso, precisamente e principalmente, que incidiram as "investigações" jornalísticas, com diversos "directos" e "entrevistas de rua", em todos os canais.

Em Portugal, onde perdura ainda o terrorismo politicamente correcto, não é "possível" pronunciar palavras como preto, negro, bandido, marginal ou, mais prosaicamente, canalha. Mas no estrangeiro, pelo menos em alguns sítios, ainda há quem chame as coisas pela respectiva, compreensível, exacta designação. A BBC, por exemplo, chamou todos os bois pelo nome, quanto a este caso. Em texto e em imagens; estas passaram, nada curiosamente, "cortadas" nos "serviços informativos" cá do torrão; ou seja, não passaram.

Como refere a própria BBC, e como é óbvio para toda a gente, menos para o "Governo" português e sua avençada comunicação social, este "piqueno" incidente (e respectivos subsequentes anexos e recidivas) irá fatalmente afectar o sector turístico nacional. Depois de destruídas a agricultura, a pastorícia, os têxteis, as pescas, as indústrias mineira e de construção e reparação navais, entre muitos outros sectores de actividade, resta a Portugal apenas uma indústria com alguma viabilidade: o turismo. Não por acaso, a "europa" subornou este país governado por mentecaptos com umas auto-estradas, umas pontes e coisas assim; a finalidade evidente era que Portugal passasse a servir apenas como colónia balnear da Europa; transformar os portugueses, de uma vez por todas, em meros empregados de café - ainda por cima veneradores, atentos e obrigados. A "europa" vai-nos pagando para que nos destruamos metódica e alegremente, sem dar grandes maçadas a alemães, ingleses e franceses... mas parece que nem disso somos "capazes"; a incompetência lusitana é de tal ordem que nem a porcaria do turismo a gente consegue preservar; bem arrependidos devem estar, por estas horas, os pagantes europeístas germanófilos e francófilos, e mais ainda os castelhanos; por este andar, lá se vai o mesito de férias cá na colónia, para toda aquela massa de capitalistas e de trabalhadores europeus; com chatices destas, pretalhada a varrer areais à paulada, nem Herr Fritz nem Mr. Dupond nem M. Smith cá tornarão a pôr os pés, e Señor Paco "tampoco".

13 de Junho 2005

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OS DEZ MANDAMENTOS DO VERDADEIRO BLOGGER

1. Não terás outros interesses além do teu próprio blog.

2. Não farás para ti imagem esculpida nem terás mais pequena ideia de nada que se assemelhe ao que existe no blogbairro, nos céus, ou em baixo, na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.

3. Não pronunciarás o nome do Abrupto em vão.

4. Lembra-te do dia de sábado, para corrigir os posts que escreveste durante a semana.

5. Honrarás Blogger.com e Blogspot.com e cagar-te-ás altamente para os outros hosts merdosos.

6. Não insultarás gratuitamente; apenas se te pagarem.

7. Não cometerás plágio.

8. Não terás sistema de comentários, nem que a vaca tussa.

9. Não apresentarás falso testemunho contra quase ninguém.

10. Não cobiçarás o blog do teu próximo, não cobiçarás excessivamente a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi (principalmente o seu boi), nem o seu jumento (principalmente o seu jumento), nem coisa alguma que pertença a teu vizinho, esse bloguista da treta .

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04/07/05

Citando Caius Julius Caesar (100-44 AC) "Há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar."

Retirado de "http://pt.wikipedia.org/wiki/Lusitanos"

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03/07/05

A bicha solidária(*)

Jean-Christophe Rufin escreveu As Causas Perdidas (Edições Asa), espécie de autobiografia curta, numa forma híbrida de ensaio e de novela, em que relata a sua experiência de ligações perigosas com ONG e diversas instituições supranacionais ligadas à fluorescente indústria da chamada "ajuda internacional".

Ontem, 2 de Julho de 2005, decorreu em vários palcos espalhados pelo mundo o segundo evento designado por Live Aid, uma coisa cuja designação foi desta vez transformada em "Live 8" - ao que parece, com a filantrópica e humanitaríssima intenção de influenciar o grupo dos 8 países mais ricos do planeta (G8), que reúnem volta e meia para tratar dos seus negócios. Note-se que, por regra, e para a coisa ficar bem no comunicado final, os chefes das oito tribos (EUA, Rússia, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Japão e Itália) acordam em "perdoar" algumas dívidas de alguns Estados mais "pobres", nomeadamente os mais paupérrimos países africanos.

O que existe de factor comum entre as duas coisas é um bocadinho assustador quando traduzido em palavras: ambos, reunião e festival, perdão da dívida e peditório global, são absolutamente sinistros. Sinistros, precisamente, porque nem uma coisa nem outra são aquilo que parecem. Sinistros porque ambos, governantes dos países "ricos" e intérpretes "solidários", se recusam sistematicamente a dizer a verdade - chamando subtis e simpáticos nomes a coisas que não têm nada de subtil ou de agradável: a morte pela fome, a violência gratuita, o primitivismo troglodita, a corrupção institucionalizada nas diversas repúblicas das bananas e, por fim mas não menos grave, a inevitabilidade da exaustão de recursos.

Jean-Christophe Rufin apresenta n'As Causa Perdidas, demonstrando-a com factos, uma tese esmagadora, terrível, e que se pode tentar sintetizar em alguns axiomas simples: em todas as épocas e em qualquer local, a viabilidade da existência de vida - qualquer que ela seja, não apenas a dos seres-humanos - é regulada por factores naturais que se traduzem numa equação elementar, ou seja, a quantidade de recursos (alimento) a dividir pelo número de elementos (bocas a alimentar); portanto, e como é evidente, quanto maior for a quantidade de recursos ou, digamos, quanto mais abastecida estiver a despensa, mais pessoas podem sobreviver abastecendo-se nela; logo, o contrário também é verdade, isto é, quando há menos pão (ou manteiga para, como dizia Eça de Queirós, barrar por cima) menos haverá para comer e, por consequência, é necessário que o número de bocas diminua em conformidade, até que o equilíbrio se restabeleça. A Natureza encarrega-se, desde que existe vida à superfície da Terra, de zelar para que este equilíbrio se mantenha: os períodos de seca prolongada, por exemplo, fazem ciclicamente razias sistemáticas em espécies inteiras, de mamíferos a insectos, passando por répteis e por aves; ultrapassado esse período de crise, quando volta a chover, segue-se uma época de pujança natural, os poucos sobreviventes da tragédia multiplicar-se-ão a uma velocidade estonteante e o ciclo recomeça.

Em concreto, o que As Causas Perdidas diz é que os efeitos da chamada "ajuda internacional" são devastadores, a muito mais curto prazo do que se imagina ou do que é tido por "conveniente": alimentar populações famintas pode, no imediato, impedir que milhares de pessoas morram à fome; no entanto, estas pessoas, cujo número excede largamente o das possibilidades que oferecem os recursos localmente disponíveis, sendo alimentadas através de bens essenciais importados "gratuitamente", irão (natural e fatalmente) gerar mais filhos... que terão fome dentro de pouco tempo, porque os recursos locais se mantêm os mesmos - ou menos ainda do que antes da "ajuda". O que diz Rufin, mesmo dando de barato que a indústria solidária consome a maior parte daquilo que deveria distribuir, é esta enormidade: quanto mais alimentos forem externa e artificialmente fornecidos às populações de regiões economicamente deprimidas, mais depressa essas populações se reproduzirão - e mais depressa o problema refluirá mas, a cada nova operação caritativa, exponencialmente agravado... até à insustentabilidade final, quando o problema alastrar de tal forma que já não haja de onde importar alimentos.

Algumas alminhas mais caridosas e militantemente boazinhas ficarão por certo, perante esta teoria, literalmente de boca aberta e de indignação aperrada. Mas afinal, o que diz esta besta-quadrada? Que se deixe morrer milhões de sudaneses à fome? Quererá ele que não se faça nada, quando morrem de subnutrição quatro crianças por hora (ou serão quarenta?***), apenas na África negra? Mas quem é esse gajo? Quem se julga ele para condenar assim à morte milhões e milhões de seres-humanos?

Calma. A coisa explica-se. O que diz Rufin, que não é propriamente um frequentador de concertos de caridade e que bateu durante décadas com os costados no pó da Eritreia (por exemplo), é que a ajuda internacional deveria focar a resolução e não o adiamento dos problemas: distribuir preservativos, juntamente com os sacos de farinha; formar localmente, de forma séria e metódica, eliminando a gigantesca máquina da indústria solidária, técnicos de saúde e professores que ensinassem métodos contraceptivos às populações; esterilizar gratuitamente quem o solicitar; criar mecanismos de controlo político e económico (ou pôr a fazer alguma coisa aqueles que já existem para o efeito), para que os donativos sejam canalizados para quem deles necessita e não para os bolsos dos caciques locais; desmontar o monstro burocrático cuja função consiste em parasitar as necessidades básicas de povos e nações, fazendo reverter essa poupança para os locais afectados, transformando os "Jeeps", os aviões e as mordomias do pessoal das ONG em simples alfaias agrícolas, em cursos de formação profissional, em fertilizantes e em medicamentos. Enfim, há mais de onde estas vieram, mas estamos conversados quanto a sugestões curiais; o objectivo seria então o da racionalização sustentada de recursos locais, através da desaceleração progressiva da taxa de natalidade, por um lado, e a criação de mecanismos de compensação, planeamento e actuação também locais. Em resumo, a ideia até não é assim tão disparatada e nem sequer é nova: "se alguém te diz que tem fome e te pede um peixe, não lho dês, mas ensina-o a pescar ou simplesmente dá-lhe a tua cana". Pronto. As alminhas caridosas já podem fechar a boca.

Incomparavelmente melhor, de facto, do que assobiar para o lado, porque "isto não é comigo" ou porque "já dei para esse peditório", e muitíssimo mais eficaz do que fingir que se está "muito preocupado" e ir ali adiante comprar o bilhete para a gala ou para o concerto de "solidariedade". Uma pessoa pôr-se na bicha solidária para ir ver o Sting ou a Mariza, entrar em gigantescos espectáculos circenses "solidários", parece que não garante um lugarzinho no céu; a participação em rituais e liturgias "solidárias", acender milhares de isqueiros ou cantar de braço dado o "We Are The World", não despertará provavelmente grande simpatia no Grande Irmão que está lá em cima. Mas também Ele, que tudo perdoa, já deve estar um pouco farto de tanto fingimento, enjoado de tanta hipocrisia e, mesmo sabendo que todos são Seus filhos, lá estará agora pensativo, cofiando as longas e veneráveis barbas, triste e um pouco revoltado por ver tanta incompetência.

Este deprimente circus maximus do eminente freak Bob Geldof foi o segundo no espaço de vinte anos. Nestas duas décadas, apesar de todos os esforços dos "artistas", a situação mudou, e de que maneira, mas para pior. Jean-Christophe Bruxo Rufin, por conseguinte. Ninguém sabe, hoje como ontem, o que acontece aos cinco por cento de muitos milhões que estes espectáculos "gratuitos" geram. Por mais industrializada que esteja a solidariedade e por mais que se tente lucrar com as acções que se detenham nessa indústria, mais uma vez a História se encarregará de demonstrar que a vaidade vende apenas desgraça. E a hipocrisia rende dividendos só durante algum tempo. Nunca durante o tempo todo.



(cf. Dicionário Houaiss: ténia, s.f. 1. design. comum aos vermes cestóides do género Taenia da ordem dos ciclofilídios, que reúne importantes parasitas cerebrais do homem, vulgarmente denominados solidárias. 2. m.q. SOLIDÁRIA (desinação comum); Etim lat. cien. gén. Taenia, as 'fita, tir, ténia')

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01/07/05

SOS Raquitismo


É algo de antropologicamente interessante e de espeleologicamente relevante. Neste blog (não neste aqui, mas naquele ali, onde diz "neste blog", ..., enfim, desenrasquem-se), reflecte-se sobre a problemática do raquitismo, suas implicâncias e relações intrínsecas, formais e informais, com a sociedade em geral e com os baixinhos em particular. Trata-se de inovadora e subtil localização virtual dedicada à denúncia dos abusos perpretados sobre a minoria minorca, passe a redundância, e sobre o pessoal pequenino de forma abrangente, para já não falar da miudagem empedernida, as massas heterogéneas bloqueadas algures numa qualquer fase imberbe. Ao que parece, esta gente embirra solenemente com tudo aquilo que cheire a Lilliput ou que seja swift, pura e simplesmente, ou ainda quaisquer outras diminutas, desfazadas ou simplesmente mirradas coisinhas. Feitios lá deles. Vale a pena a visita, de tão cómico. São muito engraçados, estes milicens: não gramam gajos altos e espadaúdos, e é que não gramam mesmo.
À disposição, uma linha telefónica para qualquer marquesmendesiano cidadão poder denunciar situações de abuso, tipo "ó tio ó tio, este gigantone batê-me": 217552700.
Dispõem também de capangas para serviço ao domicílio, ou seja, uns tipos não muito acima do metro e oitenta que, nas horas vagas do serviço de gorilagem na Soeiro Pereira Gomes, se voluntarizam para competentemente desancar um qualquer atrevido que chame "baixinho" a um baixinho ou "minorca" a um minorca. Excelente, limpo, lindo serviço. Digo eu, de baixo dos meus 173 cm que é, modestamente, uma altura suficientemente correcta.

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