Micro-causa estourada
Arrepelam-se, virtuosamente, certos e certas
gajos e gajas que se julgam pessoas finas, por causa dos touros e das touradas, e daquilo que, nas respectivas, doutas, esclarecidas opiniões, representam esses espectáculos: sangue, violência, primitivismo. Causas estouradas, por conseguinte e como adiante se comprovará, por mais frívolo que pareça o modestíssimo jogo de palavras. Sucedem-se os fogachos do género, nos últimos dias, e enquanto a "causa" e a coisa estiverem a dar, apenas porque foi anteontem re-inaugurada a praça de toiros do Campo Pequeno, em Lisboa e, como costuma suceder em qualquer recinto do género, ali decorreu uma corrida competentemente inaugural.
A foto lá em cima provém do próprio
blog citado, que não refere a fonte (certamente por uma boa causa), e mostra a horrível imagem de um toiro sangrando abundantemente do
morrilho - cravejado de bandarilhas, como compete. Acontece que este, por sinal, belíssimo exemplar de toiro bravo, aparece em pontas; o que significa que o animal retratado não foi corrido anteontem, no Campo Pequeno, excelente, tradicional, lindíssimo e renovado local onde decorreu uma corrida dita de "à portuguesa", isto é, com lides a cavalo, apenas, mais as respectivas pegas de caras; não dá muito jeito, como sabemos, como sabem até os mais empedernidos militantes dos direitos dos (outros) animais, por exemplo ao cabo de qualquer grupo de forcados, receber no peito o focinho integral do toiro com os cornos em pontas; o mesmo vale para os cavalos, que são, como também não é difícil entender, aqueles bichos em cima dos quais montam os cavaleiros. Ora, acontece que estes cavalos de toureio, como os cavalos em geral, custam muito dinheiro; um forcado não valerá assim tanto como um cavalo de lide mas, convenhamos, não seria lá muito prático recolher sistematicamente cadáveres de forcados das praças, no fim de cada corrida. Aquilo é um espectáculo como qualquer outro, pelo menos desde que - malogradamente - acabaram os circos romanos.
Mas deixemos estas minudências, pelo menos para já, que não são relevantes os pormenores. O que interessa, aqui a tese, onde o ponto bate, quanto a mais esta indignadíssima manifestação de amor aos (outros) animais, é que a foto que ilustra o referido
chorrilho de diatribes é absolutamente falsa; foi ali colocada, pretensamente figurando o arrazoado de indignações, e, para mais, com retoques de malvadez - como filtros de gama, para realçar a fealdade do sangue empastelado - apenas com uma finalidade: tentar convencer os mais ou mais provavelmente ingénuos da putativa "bondade" e das excelentes intenções civilizadoras que movem e impulsionam aquela gente, os tais, os bonzinhos, os defensores dos (outros) animais. Tudo, como sempre acontece com esta espécie, em nome de algo que os ditos consideram ser a sua (deles) superioridade moral. Conseguem, frequentemente, calculo que sustendo o riso, dar uma (ideia) de que são puros e impolutos, perfeitos e acabados, supremos e superiores, eles sim, em suma, a realização do ideal humano: são a bondade personificada, eles, demónios todos os outros. É muito simples.
Poucos destes paladinos sabem aquilo que sucede a um toiro depois de uma corrida "à portuguesa". Aliás, estão-se nas tintas para minudências do género, como sempre, em circunstâncias conexas, quando em plena actividade de "luta", e é gente muito viajada, como se sabe, vão a todas, a Paris, com os "estudantes", a Teerão, com os "estudantes", a Cabul, com os "estudantes". São aparentemente muito estudiosos, ou, pelo menos, muito amigos dos estudantes, mas não sabem - como os estudantes não sabem - porra alguma de coisa nenhuma. Não sabem, por exemplo e em concreto neste assunto, que um toiro lidado, em Portugal, é deixado nos curros até ao dia seguinte, com as bandarilhas espetadas no dorso; que estas bandarilhas têm pontas em ferro e que, portanto, o animal sofre rapidamente uma infecção generalizada; que a baia na qual o toiro é metido não lhe permite quase mexer-se, o que irá certamente agravar o estado de alucinação, a febre provocada pela infecção; que, em alguns casos, quando a praça de toiros não tem espaço para alojar todos os toiros lidados até ao dia seguinte, alguns são amarrados e pendurados pelos artelhos, ficando de cabeça para baixo até à chegada do veterinário; que os animais apenas podem ser abatidos, por fim, finalmente, se e quando este veterinário estiver disponível para assinar a respectiva papelada; que muitos toiros morrem, miseravelmente, de colapso cardíaco ou, pior ainda, simplesmente de
stress - ironia das ironias - por não poderem mexer-se, correr, marrar, lutar, como antes faziam na sua charneca natal, nas suas planuras alentejanas, ou algures nos prados da Extremadura espanhola.
A corrida "à portuguesa" surgiu precisamente pelo horror esquizofrénico e delicadíssimo que a oligarquia nacional sentia por ver o toiro a ser estocado em plena arena. O mesmo tipo de nata, ou borra social, pretende agora liquidar não apenas a variante "à portuguesa" da corrida de toiros, como qualquer outro tipo de tourada. Fazem tremenda tourada por causa das touradas. Pretendem, do alto da sua pretensa superioridade moral, acabar com todos os espectáculos taurinos. Bem, menos com um: o do bife do lombo, de preferência de "vitela". Pois essa "vitela" que dá
prós bifes, amiguinhos, geralmente, é um pobre bezerro que nunca vê a luz do dia, para que desenvolva uma esplêndida anemia (o que dá o tom rosado e a maciez à carne), que está confinado a uma baia minúscula, desde que nasce até que morre, uns meses, até ser paralisado com pistola eléctrica e, pendurado como os toiros pelos artelhos (os tendões das patas, valha-me Deus), é-lhe vazada a jugular, percorrendo então - enquanto larga vivo todo o sangue que tem para um escoadouro - a sua última e electrónica via-sacra: o primeiro operário da linha de desmontagem corta-lhe a cabeça com uma serra mecânica; o segundo abre-o, de baixo para cima, do pescoço até aos quartos traseiros; o terceiro corta-o ao meio, o rabo para a direita; o quarto, no fim da linha, empurra cada uma das metades em seu guincho, cada qual pendurada em seu chispe, até à câmara frigorífica.
Vocês, os "amigos" dos (outros) animais, não fazem a mais pequena ideia daquilo que é um toiro de lide. Pelo mesmo motivo que não distinguem um bife do lombo de uma posta mirandesa ou mesmo de uma fatia de torresmos: é tudo paparoca, não é? Desde que não vejam o cozinheiro a cuspir-vos na sopa, tudo bem, certo? Não imaginam que algum padeiro, para apenas dar um exemplo, possa ter mijado na massa do pão, fornecendo-vos de madrugada a carcaçazinha ligeiramente mais condimentada. O horror não vos passa pela cabeça, camaradas. Comida é comida e, desde que se não veja como é feita, tudo vai bem. Adorais frango "do campo", devidamente grelhado a carvão, pois não adorais? Leitãozinho assado, hem, à moda de Negrais ou a fingir que é "verdadeiro Mealhada"? E umas almondegazinhas feitas com belíssima carne de burro velho, vale? Não é pitéu admirável? E o belo fiambre, desperdícios orgânicos dos matadouros, macerados primeiro, liquefeitos depois, e solidificados por fim com gelatina? Hmmm? Não é deliciosa, a "sandezinha"? Ah, a gelatina, esse doce admirável, constituído por material triturado proveniente dos chispes (as patas das rezes), liofilizado, misturado com aromatizantes, conservantes, edulcorantes, glutamato monossódico (intensificador de sabor, sal) e, por fim, com essa substância caríssima que é a água da torneira.
Enfim, amiguinhos, fiquemos pelas amostras. Excelentes merdas comeis vós, os bonzinhos, os amiguinhos dos (outros) animaizinhos, como comemos nós outros, os "mauzinhos", os aficionados, aqueles que apelidais de "assassinos" e de "sádicos". Confere. Pelo menos não somos, nós, os outros, masoquistas. Ou estúpidos, tão estúpidos. Ou cegos. E ainda, muito menos, hipócritas.
De facto, é uma tristeza o que sucede ao toiro de lide; mas não durante a corrida, aquilo para que foi criado, antes depois - o que lhes sucede depois, quero dizer - e que é, admitamos sem rebuço, algo de malévolo, e sádico, e criminoso. Realmente, o toiro deveria ser morto em plena arena, logo após a lide, passado a estoque ou por qualquer outra forma digna.
Ora, se isso não acontece, vejamos: de quem é a culpa?
P.S.Pois. Exactamente. O que eu pretendia dizer era
isto mesmo.
A morte do toiro na arena.
Se for no açougueiro é, de facto, diferente. Concordo. Nesse caso, a referida morte não pode sequer ser aclamada "
em uníssono por milhares de pessoas", basicamente porque nos matadouros não existem, geralmente, bancadas. Aliás, não é a morte que é aclamada nas arenas. Pelo contrário. É a vida. Não vejo o que há de incompreensível nisto. Mas
deve ser problema meu.
Sai uma costeleta de novilho. Mal passada, sim?