A letra M
Olá, o meu nome é João, tenho 30 anos e sou casado há 2. Tenho acompanhado a correspondência no seu "consultório sentimental"e ando para lhe escrever há que tempos sobre um assunto que me deixa curioso e que resulta simplesmente da leitura dos seus escritos: é que me parece que você, afinal, detesta as mulheres! Pois é, que raio, você dá-lhes na touca à força toda, parece que não gosta... será? Há uns tempos li aqui uma transcrição de um anónimo qualquer que insinuava que você às tantas pega mas é de empurrão...
Porra, ó homem, você nem me diga uma coisa dessas! Não posso crer. Mas lá que você lhes chega, ai isso chega. Foda-se! Até parece que nunca conheceu uma gaja decente! Bem, já agora deixe-me que lhe diga que a minha também não é lá grande coisa (caralho, isto é para ficar aqui entre nós, ok?) e eu devo confessar que já estou farto dela até à raiz dos cabelos. São só dois anitos (faz no próximo dia 15, precisamente) mas, se pudesse, já a tinha empontado; olhe, fazia como aquele gajo do anúncio, pegava nela ao colo, ia lá a casa dos paizinhos dela e despejava-a no chão, como se fosse mercadoria marada: tomem lá esta chata do caralho de volta, e já agora chutem para cá o guito que eu torrei à conta dela.
Mas enfim, isto sou eu a falar. Há que aguentar, de peito feito e cara alegre, como você diz. O que interessa agora (e, sinceramente, duvido que você responda a isto) é saber que raio de ódio é que você tem às mulheres em geral. Caralho, você deve ter sido encornado para cima de uma data de vezes! Não lhe queria estar na pele, se não estiver enganado.
No hard feelings, old chap!
Saudações.
J.
Caro João, bem-vindo ao consultório.
A sua mensagem merece resposta, olá se merece, quanto mais não seja porque há décadas que não ouvia ou lia a expressão "já a tinha empontado". "Empontado", que giro, do muito injustamente esquecido verbo empontar. Olha que bem. Até fui ao dicionário confirmar se esse delicioso termo ainda lá estava e, confiramos, não consta do Houaiss (são as putas das modernices) mas consta de uma enciclopédia e do velho P.E.
Pois empontar, caro amigo, é precisamente o assunto de que fala vocência. Lá esses números do carrinho-de-mão, paneleiragens e tal, desculpe mas terá de consultar o tal anónimo, que além de anarquista parece ser realmente especialista no assunto. Eu cá, de paneleirices pouco ou nada entendo, a não ser que eles lá e eu aqui, que se fodam - em sentido figurado e em sentido literal - a bem da nação, e que não me chateiem é o que é preciso. Mas respondendo directamente à sua pergunta, não: ou melhor, como é politicamente correcto dizer-se, acho que não; nunca experimentei tal coisa e, sinceramente, não me estou a ver a sequer chegar-me ao pé de um gajo que cheira como eu, é tão feio como eu, tem uma coisa tão horrível entre as pernas como eu tenho e, principalmente, está completamente desprovido daquilo que me interessa em assuntos de cama: cona e mamas, não necessariamente por esta ordem; claro que o belo cuzinho também conta, e ó de que maneira, mas quando falo de cu falo de ancas largas, uma peidola valente e assim para o grandalhão, provida de preferência de uma apícola cinturinha, umas coxas nutridas e, em especial, de um pudor especial com esse detalhe anatómico. Já conheci umas duas ou três para as quais o belo enrabanço era o prato principal, o mais suculento e preferido, mas foram a excepção e não a regra.
Aquilo de que as mulheres realmente gostam, como todos sabemos, é de levar na cona. Nada mais, nada menos. E isso remete para o assunto central da sua questão: serei eu um miserável misógino, isto é, terei eu uma aversão desmedida às mulheres em geral?
Bom, dando de barato que nestas extremamente científicas questões a primeira pessoa do singular deve ser academicamente banida, já que o subjectivismo embota qualquer raciocínio, parece-me dever começar por afiançar que sim. Realmente, a minha prática e a minha teoria, daquela resultante, apontam nesse sentido: as mulheres servem única e exclusivamente para aquilo de que mais gostam, ou seja, repitamos para que não restem dúvidas, para levar na cona e pouco ou nada mais. Como dizia alguém que pouco entende destas subtilezas mas que diz umas coisinhas acertadas, é fodê-las primeiro e mandá-las foder depois. No fundo, vejamos, é isso mesmo que elas querem. Claro que milénios de aculturação as forçam, geralmente contrariadas, coitadinhas, a fingir perene e sistematicamente que não é assim, mas é. A suprema felicidade, para qualquer mulher, dura e é enquanto estiver com ele encavado. Não sejamos líricos, porque elas também o não são. Toda a parafernália, o chamado arsenal sentimental feminino, se resume a uma questão central: com quem vou foder a seguir?
Ingente e urgente questão, que tantas e tão belas páginas tem dado à Literatura universal ou, pelo menos, do lado de cá dos Himalaias. Inúmeros patarecos e choninhas, como Shakespeare ou Balzac, para citar apenas dois exemplos, escreveram que se desunharam sobre a nobreza dos sentimentos e a intrínseca delicadeza da fêmea, quando esta, cagando-se absolutamente para tais patacoadas, escreve e diz as coisas como elas são; veja-se o caso de Florbela Espanca, essa notória histérica, entesoada até à medula, que não se coibiu de chamar os bois pelos nomes:
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Ora aí está, amigo João. Troque vomecê o verbo, esse lindo verbo "amar", tão glosado pelos homens e tão gozado pelas mulheres, ponha-lhe o devido e correcto "foder" em vez, e já vê: a chavala o que pretendia era foder que nem uma leoa. Porém, precisamente, há que entender estas subtilezas de linguagem, mulher alguma - ou, melhor, só uma ou outra, esta Florbela foi uma excepção - se atreve a não utilizar o código específico da Língua da nação fêmea. Gaja que fale em "foder", sem mais aquelas, arrisca-se a levar com o carimbo de grandessíssima e alternadíssima puta, pelo que a alternativa é ir usando umas palavrinhas glicodoces e melífluas em vez daquelas que lhes apeteceria dizer. Por isso, além de "amor" em vez de "foder", dizem "coração" em vez de "cona", e falam dos seus "cabelos" quando pretendem significar "cu" ou "mamas" ou "pentelhos". E assim por diante: "paixão" é "tesão", "saudade" é "tesão de amarinhar pelas paredes", "carícia" é "punheta", etc. Mesmo a coisa em si, o trivialíssimo verbo "foder", é por elas sistematicamente transformado em "fazer amor", isso então é que me irrita até à quinta casa; já ouvi uma data de garinas babando a sua frasezinha preferida ("eu não fodo, eu faço amor") e posso afiançar que a partir daí as coisas correram pessimamente. Expressões um bocadinho mais complexas, como "adoro-te", representam imagens mentais, ou desejos não muito conscientes, que se poderiam traduzir como "gostei da última, mas soube-me a pouco" ou ainda como "foda-se, não dá para uma rapidinha, assim de repente?"
A coisa, em a gente se habituando, torna-se facílima de compreender e, por regra, dispensa tradução. E é precisamente por isto que, no meu caso particular e no de outros igualmente veteranos, a percepção dos factos e a lucidez demonstradas podem cheirar, diria mesmo tresandar, a pura misoginia. Mas não corresponde à verdade, como se demonstrou com exemplos. Uma coisa é alguém não gostar de mulheres, ou porque é paneleiro ou porque prefere exclusivamente bater pívias, outra coisa bem diferente é um gajo dizer aquilo que acha sobre as mulheres e, nesse caso, arrisca-se a ser mal interpretado. Por mim, caro João e caros outros colegas das belas artes, quero bem que isso se foda; tento explicar, de quando em vez, que não é por compreender as mulheres que deixo de gostar delas, em geral, e de umas quantas em particular, e muito menos deixo de apreciar tudo aquilo que elas me podem dar. Apenas não chamo a isso, a tudo o que elas me podem dar, os nomes que elas pelos vistos gostariam que eu chamasse. Fodei-vos. Eu quero é cona, não "coração". Que se foda o coração, que só dá chatices. Eu quero é foder, não "amor", não "paixão". Se houver alguma simpatia pelo meio, alguma amizade, melhor, excelente; se não, bem, então a coisa durará um pouco menos e será um pouco menos intensa. Nada mais. É como num jogo de fortuna e azar: rien ne vas plus.
Que uma qualquer mulher se diga (ou se sinta, o que vem a dar no mesmo)"apaixonada" por um tipo qualquer, é para mim o mesmo que ouvir o Marco Paulo a cantar: desligo imediatamente. Que possa ser eu próprio o objecto desses "amores" e dessa "paixão" emociona-me tanto como ouvir o mesmo Marco Paulo a cantar, já depois de eu ter desligado o cantante. Contente ficaria, isso sim, e fiquei em diversas ocasiões até hoje, quando uma mulher - porque também há disso - mostra que é um ser humano e não uma simples máquina de foder; quando - especialmente depois de a gente foder - me acende um cigarro ou me chega a cervejola; quando é simpática, e gentil, e amorosa; quando sorri sem ser de pura lascívia; quando um abraço ou um beijo têm tudo de carinho e nada de cio; quando me endireita o colarinho da camisa ou quando me compõe o nó da gravata. Quando, por fim, está comigo porque sim e não porque me deseja. Se bem que esta última também me não desagrade, mas não estraguemos a fluidez natural do texto.
E isto remete-nos para o início: o genial verbo "empontar". Pois saiba o amigo que, pessoalmente, sim, já fui empontado algumas vezes. Escusa de se começar já a rir porque, se bem conheço as mulheres, a sua estará muito provavelmente - neste exacto momento - a pô-lo a si em pontas (que é outro significado possível do verbo), ou seja, a empalitá-lo alarvemente. Dois anitos, diz o amigo? E diz que já está farto dela?! Hihihi. E ela não? Ela ainda deve estar muito apaixonadinha por si, descanse. Eu é que não queria estar na sua pele, ora essa! Vossemecê é que pode ser encornado, não eu, ou quem é que é aqui o gajo casado? Foda-se, fique-se lá com a sua mais-que-tudo, desenrasque-se, mas também não venha para cá mandar boquinhas foleiras.
Mas vá lá, por esta vez passa. Não faço a mínima ideia de quantas vezes a minha primeira mulher me "empontou" (ou empalitou), no mesmo período de tempo; presumo que algumas; como diz a Bíblia, se não em obras, pelo menos em pensamentos e seguramente por palavras. Isso é uma coisa chata que me sucede, a saber, falar a dormir, e calculo ter sido assim que a dita arranjou um pretexto para se "vingar", à época. Já a segunda (e devo acrescentar que, depois desta, já não houve mais encornanços legais, porque nunca mais caí desse cavalo abaixo), bem, essa só me empontou uma vez... se bem que tenha sido uma vez de escachar, uma coisa horrorosa. De outros episódios semelhantes não reza a minha história pessoal, porque não houve mais nenhum consórcio legal e porque, inerentemente, esse tipo de maçadas apenas ocorre a quem é suficientemente imbecil para casar ou juntar os trapinhos; em namoricos e assim, a gaja que me troque por outro apenas me resta desejar-lhe boas noutes e que se divirta; é uma chatice a menos e permite passar à seguinte de uma forma mais expedita.
Mas não se julgue que aquilo que penso ter demonstrado não ser "raiva" ou "asco" se agravou ou se deve em exclusivo a estes tristes episódios de empontanço. Nada disso. Evidentemente, tais e tão públicas "traições" acabam fatalmente por criar anti-corpos em quem delas é vítima, mas tudo acaba em bem, até porque tudo acaba, e o tempo se encarrega de repor a ordem natural das coisas: a primeira vive mais sozinha do que um cão, tendo por companhia apenas o álcool; da segunda, nunca mais ouvi falar; das outras, nem quero tomar conhecimento; volta-e-meia, lá vejo uma em plena rua, irreconhecível, gorda como um batoque ou velha como uma carcaça; cumprimentos lá em casa, é o que lhes desejo.
"Gajas decentes", como diz, conheci uma única... até hoje. Mas tanto o conceito de "decência" como o seu inverso, a "indecência", dependem de uma única variável: toda a gente é "decente" enquanto não se descobre que, afinal era "indecente"; e também pode, muito mais raramente, suceder a operação contrária. Por definição, e na acepção estritamente sexual do termo, mulher "decente" é coisa que não existe e que não faz sequer, de um ponto de vista sociológico ou zoológico, sentido que exista. Pelo menos, não desde Maria Madalena, essa artista pelos vistos sinceramente convertida à santidade.
Pronto, amigo João, espero ter contribuído para a sua paz de alma. Esteja descansado. Aqui é tudo heterossexual (estão dali a dizer-me "achamos, achamos") e tudo finos apreciadores do belo sexo. Não temos caganças, é só isso. E o facto de eu ter exposto aqui assim a minha intimidade, que fique bem claro, é uma excepção que se fica dever em exclusivo ao facto de me ter apetecido. Nada mais a declarar.
Cumprimentos à esposa.
001
P.S.: a propósito: afinal, que tal é a sua mulher? Bom material? Homem, não se acanhe! Mande foto dela ou, melhor, mande-a a ela, em pessoa. A gente cá se encarrega de lhe aliviar o fardo a si. Os amigos são para as ocasiões, como soe dizer-se; temos de ser uns para os outros, não é? Às ordens.