Um testamento político
O que somos nós, pobres humanos, senão a soma algébrica daquilo que nos acontece?
Esta muito retórica mas simples pergunta poderia ser da autoria de um qualquer filósofo, humanista ou pensador, mas não é; lembro-me perfeitamente de a reproduzir em voz alta, assim, textualmente, uma e outra e outra vez; e aconteceu que, ao contrário da teoria geralmente aceite, ou seja, que uma coisa repetida até à exaustão acaba por perder o significado, quanto mais a repetia mais real me parecia a verdade contida naquelas palavras, mais sólida, mais simples ainda do que ao princípio.
É possível que tenha escutado esta fórmula da boca de alguma pessoa de mais idade, de velho ou de velha, que são quem mais sabe da vida e quem menos se preocupa com a complexidade das coisas. Poderá nem ter sido exactamente com estas palavras, mas deve ter sido isso, ouvi e apreendi, guardei-a como minha na minha própria cabeça; ali ficou, esquecida mas latejante e viva, pulsando e germinando até ao dia em que viesse a ser necessária. E também isto é uma das coisas que nos aconteceram e acontecem, aquilo que aprendemos e usamos, ou que não sabemos que é ensinamento mas guardamos; a aprendizagem também sucede com cada qual de forma diferente e, no fim, o que resta antes da morte é o que sobra intacto na memória, e isso é o que geralmente se diz ser a sabedoria.
Não foi nada fácil, confesso, desfazer todo o meu passado, rasgar mentalmente tudo o que tinha lido, esquecer tudo o que tinha por certo ou, dito de outra forma, concluir que tudo o que eu tinha por verdade absoluta estava afinal completamente errado. Nessa como em qualquer outra ocasião de ruptura total, de mudança radical, é humanamente compreensível que busquemos a fórmula mágica do entendimento; nos momentos de decisão fundamental, é normal que tentemos entender as nossas escolhas, e para isso apenas nos podemos socorrer de palavras ou, no mínimo, não temos alternativa senão verbalizar as ideias da forma mais arrumada possível.
No fundo, durante essa hora decisiva - não cronometrei o tempo, evidentemente, mas não deve ter durado mais do que isso - o que estava mais em causa não era a ideia subjacente à fórmula, mas as palavras que a constituem; como o próprio significado, as partes e não o todo. E se, em vez de "soma algébrica" fosse "equação"? E porquê "pobres"? E em vez de "acontece", não seria melhor "sucede"? E não seria mais exacto se este verbo estivesse no pretérito?
Não. Ficou assim mesmo, desde esse dia e até hoje, o que é uma parte insignificante dos meus 44 anos. Eu sou, como qualquer outra pessoa, um simples ser-humano constituído por tudo aquilo que me aconteceu até hoje. Não me reconheço em verdade mais simples, como disse não sei que poeta.
E aquilo que sucedeu comigo foi ter passado toda a minha vida adulta, até àquele dia, como homem de esquerda, anti-fascista, anti-colonialista, progressista, do lado do povo e contra a burguesia. Se bem que sempre tenha sido anti-comunista, era-o de forma complacente e um pouco paternalista, considerando que mesmo os comunistas estavam do meu "lado da barricada" contra o capital, a exploração do homem pelo homem, a justiça social e a igualdade de direitos e de oportunidades.
E sucedeu também ter sofrido na pele a vacuidade das políticas de esquerda, o desemprego forçado por motivos de saúde, a exclusão social por estar desempregado, o facto de não ter quaisquer direitos cívicos por ser branco, português, homem e de meia idade. Sucedeu que, fora eu negro ou cigano ou toxicodependente, por exemplo, e teria direitos; assim, nada feito, os meus direitos cívicos resumem-se a descontar os meus impostos, religiosamente e por toda a vida, para que os privilegiados dos tempos modernos - que não descontam nada nunca nem produzem coisa alguma - recebam aquilo que eu e os outros "privilegiados" pagamos. Sucedeu isso comigo, e vi depois - vejo todos os dias - que o mesmo acontece a milhares e milhares de outros novos excluídos como eu: professores que não têm direito a subsídio de desemprego; projectos de criação de empresas que são bonificados com 10% se o proponente for mulher, e mais 10% se for menor de 25 anos. Vejo, por exemplo, serem atribuídas casas - construídas e pagas por conta dos contribuintes - oferecidas a custo zero, ou a preços simbólicos, a pessoas que nunca descontaram um centavo em toda a sua vida, estrangeiros, apátridas, elementos de minorias étnicas; vejo serem atribuídos a granel subsídios a toxicodependentes e a marginais, estando estes automaticamente habilitados a receber aqueles filões do erário público apenas pelo facto de serem considerados como "excluídos" ou "desfavorecidos"; vejo anunciadas linhas de crédito altamente bonificado (como sempre, à custa dos impostos alheios) apenas para "jovens", o que serve para enriquecer fraudulentamente os respectivos famliares; vejo os bandidos protegidos por lei e as vítimas desprezadas pelas polícias e pelos tribunais; vejo as estatísticas e leio que "morrem quatro crianças por hora, à fome, só em Angola" e vejo na TV as recepções sumptuosas e a vida luxuosa dos "camaradas" que encabeçaram as revoluções terroristas naqueles países. Vejo tudo isso, como vê qualquer pessoa que não finja ser cega, e sinto um tremendo, profundo, esmagador nojo por pertencer à mesma espécie zoológica a que essa gente pertence.
Nesse entardecer de Dezembro do ano 2000, deu-se uma verdadeira revolução na minha vida. Não ficou pedra sobre pedra. É isso que acontece sempre que nos cai em cima o mais pesado dos pedregulhos, a evidência. Enquanto o sol se punha, nasceu um reaccionário no lugar do progressista. Lembro-me de que nem dormi, nessa noite, tal era a pressa que tinha em estrear a minha nova pessoa, um reluzente direitista, agora certo de que afinal estava tudo errado e que era absolutamente necessário começar tudo de novo, ou mesmo voltar ao princípio, se preciso for.
Naquele dia, naquela hora, enquanto o sol se punha por detrás do Pacífico, vi com os meus próprios olhos a mais terrível das verdades. Que, em duas palavras, estava redondamente enganado. Que sempre tinha estado enganado. Que era tudo uma grande mentira. Que não existe barricada alguma, nem lados da barricada. Que a exploração do homem pelo homem existe, sim, mas como lei universal e não como aberração da natureza. Que a justiça social não vale nada sem a justiça pura e simples. Que a igualdade é uma metáfora política. Que os meus "camaradas" se preocupavam apenas consigo mesmos. Que o povo apenas pretende ascender à burguesia. Que, em suma, nem todos os pobres e todas as pessoas de esquerda são visceralmente boas nem todos os ricos e todas as pessoas de direita são obrigatoriamente más.
Claro que não foi em apenas 60 minutos que implodiram 25 anos de ideias feitas. Esse processo foi relativamente longo. Mas a minha polícia mental privativa, apanágio de qualquer esquerdista, que nunca me tinha deixado pensar em paz e sossego, impedia-me de retirar ilacções do observado, de concluir pela prática; assim, todas as dúvidas e perplexidades foram ao longo dos anos metodicamente terraplanadas, sempre levando à conta de "ligeiro desvio" e de coisa corrigível aquilo que era obviamente inadmissível: a riqueza patrimonial dos "camaradas", a sua dedicação indiscriminada a quaisquer "causas" que lhes pudessem render prebendas ou dividendos políticos, o seu atávico desprezo pelo mais elementar senso de justiça desde que a "justiça" a aplicar não se enquadre no seu mesquinho, pequenino, ridículo interesse partidário. Principalmente, os milhões de mortos, as vidas destruídas, os povos exterminados, enfim, a miséria generalizada e as tragédias humanitárias em que resultaram sistematicamente todas (todas, sem qualquer excepção) as tentativas de implementação dessas ideias. Sejamos claros: o comunismo, entendido este como o conjunto das ideias esquerdistas radicais, foi a maior tragédia que a humanidade alguma vez conheceu. Isto não é questão de opinião, é facto transparente, atestado por qualquer manual de História contemporânea ou pela mais elementar observação racional.
E é por isso que agora digo o que digo e penso como penso. Que acho o "antigamente" incomparavelmente melhor do que o "actualmente". Quantas pessoas morriam à fome, antes do 25A, e quantas morrem agora; quais eram os indicadores de crescimento e de progresso, tanto de Portugal como das ex-colónias, e quais são eles hoje; qual era a franja de excluídos, a percentagem de pobreza absoluta, e qual é a actual. Afinal, era melhor "dantes"; a "revolução" foi um erro, um retrocesso, uma sórdida e lamentável mentira.
Vejo agora, sem lentes de aumentar, que a liberdade política nunca existiu; que a "igualdade" social é um mito; que a fraternidade é uma palavra completamente vazia, simples arma de arremesso, uma clava discursiva, uma simples moca politicamente correcta. Que todas as sociedades são constituídas por exploradores e por explorados, que sempre assim foi e que, provavelmente, sempre assim será. Que os valores supremos, os únicos pelos quais vale a pena lutar, são a verdade, a dignidade e a justiça. E que o único objectivo político alcançável, o único regime exequível, é o da mais pura decência: fazer o possível por construir algo de útil, sem prejudicar o próximo.
Soma algébrica, é verdade, não apenas daquilo que nos acontece mas de tudo o que fazemos. Um canalha é a soma de todas as suas canalhices. Uma pessoa de bem é o contrário de um canalha, ou seja, alguém cujo somatório de canalhices é igual a zero. Da mesma forma que os regimes políticos se avaliam pelas suas consequências sociais e não pelas intenções que apregoam, por mais altruístas que pareçam.
E reconhecer os próprios erros, mesmo que seja muito tarde na vida, não é vergonha nenhuma e será sempre infinitamente melhor reconhecê-lo do que persistir nele - mesmo que isso implique termos de aceitar a nossa própria estupidez, por termos levado tanto tempo a abrir os olhos.
No fundo, foi isso que aconteceu comigo e não me envergonho sequer de o reconhecer publicamente. Que seja para desconto dos meus pecados.