O Evangelho segundo Cunhal
Génesis
Ao princípio era o capital; não havia nem sol, nem prosperidade, nem existia coisa alguma que o capital não mergulhasse em total escuridão. Era a idade das trevas, a chamada longa noite fasssista. E Marx disse: «Faça-se luz» e fez-se luz. E Marx gerou a Engels, e Engels gerou a Lenine, e Lenine gerou a Mao-Tse-Tung, que teve três filhos, Ho-Chi-Min, o primogénito, e Pol Pot, o meão, e Arnaldo Matos, o caçula. E a todos Marx pôs no Paraíso Socialista, que fica a Leste de Lot, na Terra do Nunca.
No segundo dia da Criação, Marx criou os quatro elementos naturais: a água, o ar, a terra e o fogo. E pôs na terra os animais, e no ar as avezinhas, e na água os peixinhos de todas as espécies; não pôs nada no fogo, por falta de tempo, mas achou Marx que tinha feito obra bem feita e sentiu-se satisfeito.
E ao terceiro dia Marx fabricou por suas mãos uma estranha criatura, com um inovador mecanismo reprodutivo, e chamou-lhe Mulher, e deu-lhe o nome de Passionaria, e ofereceu-a ao triunvirato, para que a tomasse quem quisesse. E Marx disse: «Ide e multiplicai-vos» e assim se fez, milhares de marxistas floresceram e tudo rolava perfeitamente no Paraíso Socialista, e Marx sorria embevecido, por ver tanta felicidade, do alto da Sua imponente figura, as longas e protectoras barbas dardejando bondade em todas as direcções.
Ao quarto dia, criou Marx a economia planificada, esplêndida invenção que permite a justa distribuição da pobreza, e assim nasceu a sociedade sem classes e sem exploradores e explorados e sem capitalistas e sem tesos. Marx proveu a todas as necessidades do rebanho, e o mundo vivia na santa paz daquele Senhor.
E ao quinto dia, inventou Marx o demónio em pessoa, o ser mais odioso que alguma vez pisou e pisará a terra, com focinho de porco e cartola com as cores da bandeira americana e chispes a condizer, e ao criá-lo foi dizendo: «Este é o porco capitalista, o explorador da classe operária e das massas oprimidas; tomai e comei, este é o meu cordeiro que deveis correr sistematicamente a pontapé, e depois deveis caçá-lo e amarrá-lo e temperá-lo com sal e assá-lo em forno a lenha; fazei isso em memória de Mim.»
E ao sexto dia, Marx, achando-se já vagamente cansado, endrominou o pão e o circo, e nisso ficou desde então consistindo a parte lúdica reservada aos felizes contemplados com a Sua benção, os sortudos a quem era dado o beneplácito socialista e a felicidade suprema de ser chamado de "camarada".
E ao sétimo dia, que era um 1º de Maio, Marx descansou. E dali em diante ficou para sempre sendo esse o dia daquele Senhor, o dia Socialista em todo o Seu esplendor, durante o qual é proibido produzir seja o que for de útil, quanto mais trabalhar, e em que apenas devem os camaradas demonstrar a sua imensa gratidão ao Luminoso e às Suas luminosas ideias. E ficou então determinado que seria de toda a prudência aplaudir, durante as 24 horas de cada 1º de Maio, o camarada presidente, doravante conhecido como "o paizinho dos povos", e dar vivas aos camaradas do comité central, e agitar flores e cartazes de incentivo aos camaradas trabalhadores, empunhando letreiros com pichagens alusivas, e as camaradas mulheres arranjaditas para o desfile, e as camaradas crianças de lenço vermelho ao pescoço, saudando o futuro radioso desde já assegurado, e tudo, mas absolutamente tudo, na mais perfeita ordem, as tropas alinhadas ao milímetro, os tanques e os carros de assalto garbosamente rebrilhantes, e os camaradas securitários perfilados, as metralhadoras aperradas, as matracas impecavelmente limpas.
E assim nasceu o conceito de felicidade absoluta, assim despontou um sol igual para todos, assim desabrochou a verdade a que temos direito, etc., na terra prometida, uma terra sem desfavorecidos nem favorecidos, e para todo o sempre, e amén.
Números
E estando certo dia Lenine, filho de Engels, pregando no monte de Barabinks, dele se aproximou um social-democrata, da tribo dos Liberais, e lhe perguntou: «Mas como sabes tu, irmão, aquilo que é melhor para o Povo? Acaso não será este suficientemente inteligente para decidir o que mais lhe convém?» E respondeu Lenine: «Em verdade te digo, mas verdade verdadinha: o Povo é muito infantil, é assim a modos que uma criança a quem é necessário repetir as coisas infindavelmente, até que a entendam, e mesmo que a entendam por fim não é seguro; não há, pois, tempo a perder; a revolução deve avançar a todo o vapor, quer o Povo queira quer não queira; no fundo, no fundo, nós, os camaradas ascetas, puros e imaculados de pensamento, é que sabemos aquilo que interessa ao Povo, porque estamos inspirados pela graça socialista e mandatados por Marx, criador de todas as coisas, devidas e indevidas.» E, em dizendo isto, lá foi Lenine pregar para outra freguesia. E ficou toda aquela gente que o estivera ouvindo meditando gravemente, uns cabisbaixos outros nem tanto, e havia quem dissesse «pois, o camarada tem toda a razão» e outros que, certamente possuídos pelo demo e pela cobiça, rosnavam coisas, diziam «mas que grandessíssimo filho-da-puta», ou «vai trabalhar, malandro» e aleivosias que tais. Mas Lenine e os outros doze camaradas do comité central nunca por nunca ouviam estas coisas, porque os anjos do Socialismo não têm ouvidos e porque, em última análise, vozes de burro não chegam ao céu, como todos sabemos, e o que interessa é a Fé, que move montanhas, como sabemos outrossim.
E houve uma vez em que se acercou do apóstolo Beria, que era um dos Doze, certa mulher com seu filhinho nos braços e lhe falou deste modo: «Camarada Beria, estou enferma, o meu filhinho está à morte, meu marido foi requisitado para obras na Sibéria; eu sou do Povo e em verdade te digo: o socialismo apenas nos trouxe fome e miséria; no tempo do Czar, mesmo que não tivessemos a santa liberdade, tínhamos pão; que pretendeis fazer, camarada, vós outros do Partido, para acabar com a fome aqui, nesta terra a que vós chamais paraíso?» E disse Beria para o lado, ao ouvido do camarada Secretário Geral: «Ó Lenine, foda-se, desenrasca lá esta merda, diz qualquer coisa à gaja, eu cá não sou de paleio, o meu negócio é dar porrada, se quiseres espeto-lhe já um tiro nos cornos, mas não me ponhas a falar com as massas, pela tua rica saudinha!» E o camarada supremo não foi de modas e respondeu à mulher deste jaez: «Mas como pretendes tu, mulher de pouca fé, que a gente resolva um problema que não existe? Fome? Qual fome, qual cacete, mulherzinha! Isso não é fome. No paraíso não existe fome, raios! Isso é mas é cólicas, ou o caralho. Não estarás tu mas é grávida, ó chavala, hem? Ora, ora, desampara-me a loja e vai-te curar. Andor. Xô.» E com um gesto seco a despediu, não sem antes brandir o chicote que trazia, exibindo assim a sua justa indignação pelo atrevimento daquela serigaita reaccionária.
Deuteronómio
E estando Honecker em peregrinação à terra santa, que ficava em certa ilha a uma quantas milhas náuticas de Miami, topou a certa altura com Fidel, alcunhado de "O Pregador", pelas belas e intermináveis pregações que usava fazer amiúde, e disse-lhe Honecker: «Atão, ó Castro, tás fixe?», ao que o insigne mestre de obras socialistas retorquiu: «Hombre, siempre, siempre hasta la victoria, el pueblo unido jamás será vencido, arriba la revolución» e seguiu dizendo outras coisas assim, as quais eram retiradas de uma gravação muito bem sucedida ao longo de quase todo o século I da nossa Era (séc. XX da era do galileu que não se pode dizer), e que era conhecida pelo título de "a cassette", e que pretendiam alguns invejosos tratar-se da mais pura propaganda soviética, um método sonoro e ruidoso de lavagem ao cérebro para utilização sistemática nas mentes simples e nos cérebros diminutos dos povos e das populações de todo o mundo. E irritava isto profundamente a todos os inspirados pela graça marxista, em todo o mundo, pois que de mui grande mentira se tratava, e tal se comprova facilmente pela quantidade de bulas e outros despachos das entidades de todas as Internacionais, da I à V, de ideólogos tão insuspeitos como Trotsky ou Krushev, desde Moscovo até Lisboa, passando por Phnom Phen e Pequim.
Nunca por nunca, em todo o lado e principalmente nos locais de implantação do socialismo real, se utilizou semelhante método de eliminação do pensamento pela repetição acéfala de lugares-comuns e de palavras-de-ordem. Está escrito nas verdadeiras tábuas do Kremlin: «Todo aquele que propalar qualquer verdade não oficial está condenado às chamas do inferno capitalista; tremei, agitadores reaccionários e outros exploradores das massas trabalhadoras! Este é o poder da verdade inteira, aquela que foi dita pelo Senhor Lenine, que está sentado à direita de nosso Pai Marx, única e verdadeira fonte de todo o conhecimento; a nossa verdade é aquela que permanecerá como a única, a inteira e a fundamental da existência, para todo o sempre ou apenas enquanto não deixar de ser conveniente.»
E foi por isso, convencido pela convicção absolutamente cega do camarada cubano, que mandou Honecker erguer um muro que protegesse o paraíso socialista da poluição capitalista, uma barreira contra as más influências e a dissolução dos costumes; e chamou-lhe "muro anti-fasssista" e mandou decorá-lo com arame farpado de belo efeito, em duplas e triplas fieiras, e com engenhocas diversas de disparo automático, e com torres de vigia muito elegantes, e nestas colocou uns guardas armados de Kalashnikov, esse expoente do intrínseco pacifismo socialista, e deu toda a liberdade para que dezenas de mastins famintos atacassem quem porventura se atrevesse a tentar entrar em território daquela república democrática. Tudo de boa fé e imbuído do mais profundo espírito democrático, de acordo aliás com a designação oficial do país, e foi também com a mesma motivação pacifista e não agressiva que foram instalados mísseis, convencionais e atómicos, ao longo de toda a linha que, nas terras demoníacas ocidentais, era conhecida como "cortina de ferro", ou "muro da vergonha". Óbvias manobras de desestabilização da felicidade instituída em todos os territórios que ficavam a Leste do Inferno; a intenção mais do que evidente, não apenas para a construção do muro mas para a instalação dos mísseis, era a do mais férreo pacifismo; manobra profundamente amistosa e pacífica, destinada a persuadir os pobres trabalhadores, aprisionados do lado de fora do muro, das excelentes e filantrópicas intenções do chamado socialismo real. O muro continha, em cada pedra e em cada tonelada de cimento, uma mensagem subliminar: "camaradas do ocidente e trabalhadores em geral, vocês desculpem lá, pá, mas isto aqui no socialismo é tão bom, a gente sente-se aqui tão bem e isto já está tão cheio que não podemos aceitar mais gente"; o que o muro queria dizer, em suma, era que os pretendentes a entrar no paraíso eram muitos, mas os recursos do paraíso não chegavam para acolher todos; e quanto aos mísseis, tratava-se evidentemente de artefactos pirotécnicos, sofisticados, é certo, mas unicamente destinados a servir para o foguetório comemorativo que inevitavelmente se seguiria à (futura, próxima, inevitável) libertação do "ocidente".
E um dia sucedeu que certo fariseu, Gorbatchov de seu nome e "careca malhado" de alcunha, decidiu reduzir tudo aquilo a patacos, o muro, as armas e os mísseis; para grande surpresa de qualquer democrata que se preze, não houve, como seria de calcular, uma invasão maciça de trabalhadores desejosos de entrar no paraíso socialista mas, pelo contrário, uma imediata e gigantesca correria de trabalhadores a fugir do paraíso e deprimentemente ávidos de aderir ao decadente modo de vida capitalista. E bem depressa todos os países que beneficiavam da bem-aventurança socialista trataram de se passar para o campo adversário. Traidores, obviamente.
A revolução triunfará, inexoravelmente. Se está nas escrituras que triunfará, não há que duvidar de que triunfará. A revolução vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá. Triunfará. Vencerá.